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Conto de domingo: "O farmacêutico de Alanno" de Giovanni Bucci

Tão opaco que nem apelido tem, tão insignificante na aparência que mal atrapalha a vista, sonha Giovanni, um farmacêutico de aldeia. Sonha em ser agricultor e guarda no coração o segredo da sabedoria; ele sonha com o passado, com os tempos em que a timidez ainda não o dominava e ele ainda não estava excluído do maravilhoso carrossel do mundo. Mas o advento do novo ano perturba irreparavelmente sua inexistência perfeita: um amigo próximo que está morrendo confia a ele a pequena felicidade de sua devotada esposa. E o farmacêutico de Alanno retorna à vida e suas armadilhas. Giovanni Bucci assina uma história onde a esperança, repentina como um raio de sol, perfura o cinza de uma existência guardada em um armário, apodrecendo junto com velhas jaquetas e casacos. E, igualmente repentino, pode acabar por desligar.

Conto de domingo: "O farmacêutico de Alanno" de Giovanni Bucci

O farmacêutico de Alanno gostaria de ser um lavrador, desses que, quando vão à missa em sua melhor roupa de domingo, carregam folhas de manjericão na cavidade entre a espiga e a têmpora, como os carpinteiros fazem com o lápis. Ele gostaria de ter mãos atarracadas, secas e rachadas por trabalhar no campo; ir para casa e, depois de comer sagne e grão-de-bico com molho de tomate, esmurrar a mulher na mesa da cozinha, sem cerimônias, apressado e com gosto, como quando você toma um bom café mas tem pressa de ir embora. Então, depois de soltar um sonoro arroto azedo, aromatizado com as pimentas comidas na noite anterior, aproxime-se lentamente da janela e, com o palito na boca e as mãos nos bolsos, observe o milho crescendo. 

Em vez disso, ele não tinha nada do fazendeiro, exceto o andar preguiçoso e ligeiramente desleixado. Ele não era alto ou magro. Ele usava óculos. Ele tinha pouco cabelo e um pouco de pappagorgia. Ele dava mais a impressão de um funcionário do cartório. Não os que trabalham no balcão, os que você nunca vê porque trabalham nas salas internas, nos arquivos. Aqueles com pele branca como geléia por falta de sol e olheiras úmidas e lívidas por falta de mulheres. 

Segundo o farmacêutico, os camponeses eram uma raça pura, selecionada por milênios de contato com a Natureza. Disso tiraram a sabedoria, os gestos, a linguagem. Ele gostaria de ser um deles e percebeu essa oportunidade perdida como uma saudade contínua e inconsolável. 

Na farmácia, quando um fazendeiro entrava e seu cheiro bom de estábulo se espalhava, ele inalava ar para oxigenar os pulmões, como se estivesse nas altas montanhas. E ganhou vida. O sangue estava fluindo novamente em suas veias. Ele imediatamente começou a reclamar da chuva que impedia a semeadura; ele amaldiçoou o granizo como se o tivesse prejudicado; na época das vindimas aconselhava as doses de bissulfito a adicionar ao mosto, e recomendava respeitar as luas para a decantação. Os camponeses não o ouviram mais, mas agradeceram. Graças não a essas sugestões inúteis, mas à amizade cândida e infantil que aquele frágil, inexperiente e extravagante sessenta anos lhes oferecia com preocupação excessiva, mas sempre respeitosa, ingênua, sincera. 

O jovem padeiro foi o primeiro cliente naquela tarde. Era pequeno e redondo. Ele sempre carregava consigo o cheiro quente de pães recém-assados. Ela falava rápido e dava risadinhas musicais que lhe renderam o apelido de Cinciallegra. Todo mundo no país tinha um. 

Para aguentar o calor do forno, mesmo no inverno ele se vestia como se fosse pleno verão. Quando na farmácia ela se inclinou apoiando os cotovelos no balcão, a blusa mostrava todo o seu conteúdo. Em outros tempos, essa visão teria alegrado o dia do farmacêutico e fornecia o ponto de partida para longas e exaustivas meditações. Agora o interesse, embora ainda um pouco despertado, perdia-se em mil correntes de memória e, sabe-se lá porque, vinham-me à cabeça as bombas de natas: não as fritas, as feitas no forno. Como estudante do ensino médio, ele era louco por isso. E assim, no momento em que refletia sobre o ofício de confeiteiro, que imaginava com as mãos na massa, o padeiro lhe contou que tio Glauco, da sacada, além de pedir pão, informou-lhe que havia acabado de aspirina. É preciso esclarecer que Glauco, o tabacaria, chegou cedo para todos ZEu Glauco: seu apelido, que surgiu porque os filhos do Borgo o chamavam assim quando brincavam com seus dois netos verdadeiros. Ele estava de cama com febre. Giovanni, o farmacêutico, seu sobrinho natural, sabia que ele também ligava para conversar, contar, inventar histórias, como fazia cinquenta anos antes, quando voltava de Roma nas noites de sábado. 

Fechando a farmácia, com as mãos nos bolsos por causa do frio, nosso herói partiu para a casa do tio. Bastava descer pouco mais de cem metros e chegava-se ao Borgo: uma pequena praça fechada em círculo por robustas casas de estilo patriarcal, habitada sobretudo por camponeses que tinham terras por perto. O farmacêutico nasceu numa dessas casas. Mudou-se para a parte alta da aldeia com a mãe e Umberto, o irmão mais novo, quando tinha nove anos: ano da morte do pai. E naquele casarão só restou seu tio: Tio Glauco. 

Nesse período atravessava com frequência a praça do Borgo, pois, além de seu tio, visitava Antonio, um de seus amigos mais próximos de infância, que estava trancado em casa há mais de um ano por estar doente. 

O Natal estava próximo. As luzes já estavam acesas há algumas horas. Eles deveriam ter indicado uma alegria que ele não sentiu. Antes aquelas luzes lhe davam alegria e melancolia, agora ele as sentia hostis, como se tivessem dificuldade em queimar para ele também, e sob aquelas lâmpadas festivas ele se sentia um intruso. 

Sua filosofia sobre o ser humano era simples: o mundo sorri para os belos e faz careta para os feios que, para não sucumbir, desenvolvem o talento da simpatia. Quando você está com eles, você fica de bom humor; eles estão sempre alegres e prontos para rir. Pessoas feias sabem contar piadas; os belos não, porque nunca precisaram fazer isso. 

Ele não pertencia nem ao belo nem ao feio, porque era insignificante. Para sobreviver, ele construiu um mundo paralelo em sua mente. Nesta dimensão diferente, muitas vezes se apaixonou por seus clientes. Preferia-as casadas, melancólicas e sofredoras, porque gostava de acreditar que os maridos as negligenciavam, batiam nelas, mas sobretudo que não apreciavam a suavidade da pele, o som da voz e o pescoço. Sim o pescoço, para o farmacêutico um lugar de perdição, onde se concentrava toda a feminilidade de uma mulher. À noite, antes de adormecer, revia as mulheres mais bonitas da aldeia, e imaginava-as a arrumar, a limpar, a engomar, a remendar e, depois do jantar, com cara de condenado a dirigir-se à forca, a deitar-se Com seu marido. Assim ele passou seus dias. Assim passou sua vida.

Desceu a ladeira do Tarcísio e depois dobrou a esquina, depois de se despedir da mulher de Túlio que regava os gerânios da sacada.

***

Chegou à casa do tio Glauco, onde nasceu, onde ficou guardada a sua infância: aquela passada no Borgo, quando o pai ainda era vivo; quando a timidez ainda não o dominava, quando ainda era capaz de correr para liberar a alegria de viver. 

Naquela casa ninguém entrava pela porta. Havia um portão lateral sempre aberto, por onde, por um caminho a poucos metros de distância, entrava-se no pátio dos fundos, e daqui entrava-se na casa pela porta da cozinha, que nunca ficava trancada. O pátio era circundado por um muro baixo que, com a parede da casa, formava um retângulo. Além do muro baixo, abetos verdes cercavam aquele espaço e o isolavam do mundo. Foi lá que a vida de verão de sua família aconteceu.

Agora só morava ali o tio Glauco, fiel guardião da casa e de suas memórias. No lado oposto da calçada que se abria para o pátio, invisível da praça do Borgo porque estava escondido pela casa, o muro baixo era interrompido para dar acesso a uma pequena clareira cercada por um grupo de árvores em círculo. Eram acácias. Entre estes encontram-se algumas cerejeiras. Isso fez você pensar em um favor de casamento. Tio Glauco o havia chamado O jardim de cerejeiras em homenagem a Chekhov. Quando ele falou sobre isso, ele indicou como o poeta e nunca como Escritor. Ali se organizavam piqueniques, quando criança, Giovanni, seu irmão e o enxame de seus amigos do Borgo haviam montado o quartel-general para brincar de esconde-esconde e tomar as decisões mais importantes para suas travessuras. Lá eles comemoravam aniversários, dias de nomes e todos os santos que no calendário aconteciam aos domingos e dias ensolarados. 

Às vezes, à noite, ao sair, depois de visitar o tio, no escuro, Giovanni entrava no pomar de cerejas. Ficou ali imóvel, em silêncio. As plantas com flores cheiravam intensamente, como muitos anos antes, tanto que ele parecia ouvir os choros dos amigos que brincavam com ele quando criança. Ele perseguiu os rumores. Entre estes reconheceu também os seus, o que lhe causou uma dor muito profunda, como por um amigo querido que faleceu. 

Giovanni subiu ao quarto do tio sem bater nem acender a luz. Ele poderia ter andado mesmo com os olhos fechados. E de olhos fechados teria podido reconhecer o cheiro daquela casa. Estava convencido de que a combinação dos vários cheiros das especiarias utilizadas na cozinha, misturados com o cheiro de quem lá vive, constituía uma espécie de bilhete de identidade: o hálito, a loção pós-barba, a pasta de dentes, a cromatina usada para engraxar os sapatos e a marca dos cigarros fumados. Tinha a certeza de que naquele cheiro único e identificável se escondia o património genético de toda a família que ali vivia, e não só isso: também a sua história, os momentos terríveis e os raros momentos de felicidade que também atravessam a vida de todos. 

Entrando em sua antiga casa ele gostava de sentir o mesmo cheiro.

Tio Glauco estava lendo um livro de poemas. Assim que tomou conhecimento da visita, encerrou-a e, como se continuasse um diálogo iniciado por horas: 

«Cada poema tem o seu centro de gravidade. "Criança" é o centro de gravidade da Sábado da vila. “Aproveite, meu filho, doce estado …” A poesia paira sobre esta palavra, como um vestido pendurado num prego. Se você tirar o prego, tudo desmorona.” Depois, olhando para a cadeira: «Está com pressa? Você está indo para Antonio?».

"Sim", respondeu o sobrinho, sentando-se na cama e apertando o dorso do pé do tio por entre os cobertores.

"O médico me disse que ele não verá o ano novo."

«Ele me disse também», e depois de um tempo: «Como vai você?». Só com o tio e os amigos íntimos, Antonio e Pasqualino, conseguiu livrar-se da timidez e daquele ar desajeitado que o diferenciava dos demais. Uma diversidade da qual ele não poderia escapar. Como uma gagueira que surgiu indesejada, inexorável.

"Só um pouco de febre."

"Amanhã você vai ficar de pé." Giovanni começou a se levantar devagar, como um velho com reumatismo. Ele colocou a caixa de aspirina no criado-mudo. Então, quando chegou à porta, acrescentou: "Até mais". 

Tio Glauco puxou as cobertas até o queixo: "Sabe, morrer de febre ou de espinha infeccionada é humilhante."

Giovanni ficou de pé apoiado com uma das mãos no batente da porta aberta, sem falar. Parecia-lhe um daqueles momentos em que tio Glauco começava a criar fábulas, histórias, sonhos. Mas dessa vez ele apenas acrescentou: 

“Esta febre não é para mim.”

"Não?"

"Não. Eu gostaria de morrer... no meio de um tiroteio. E ele começou a rir.

“Ou como Leslie Howard no floresta petrificada?!”

"Sim bom."

"Adeus", Giovanni acrescentou depois de um tempo.

“Uma coisa que não posso aceitar sobre a morte. Eu estava conversando sobre isso com Antonio."

"Coisa?"

"Isso eu não sei dizer. Um acidente tão importante, e você não pode contar sobre isso! Eles ficaram em silêncio por um tempo."

"Amanhã eu passo."

"Diga olá para o Pitctor. "

***

O Pintor era o apelido de Antonio. Morava com a mulher na casa ao lado da do tio Glauco. Ele tinha a mesma idade e, junto com Pasqualino, conhecido como o filósofo, era amigo íntimo do farmacêutico. Quando crianças, eles gostavam de fazer xixi na parede branca que cercava a casa do tio Glauco. Antonio foi o melhor. Ele foi capaz de desenhar um círculo perfeito. Daí o apelido. Eles foram à fonte para beber para se encher de água. Depois de meia hora, eles estavam prontos para pintar novamente.

Então eles cresceram. Quando uma moça passava pela Piazza del Borgo, os rapazes se sentiam no direito de fazer um comentário. E frases codificadas como "canas ao vento" surgiram para rejeitar uma garota muito magra, ou "bunda dançante", "leite para todos" e assim por diante. Já Antonio, que já trabalhava no açougue do pai, usou termos que pertenciam a uma categoria semântica diferente. Entretanto, de uma moça ele sabia indicar o peso e a quantidade de bifes que poderia ter obtido das costelas. E depois de avaliar a firmeza dos lombos, quando o elogio era necessário, o comentário era: "Ande como uma ovelha antes da tosquia".

Foi Dora, mulher de Antonio, quem abriu a porta. Com o farmacêutico havia aquele entendimento tácito que vem de ter sido amiguinhos. Ele a acompanhou até o quarto sem dizer uma palavra. Antonio estava parado na janela. Ele olhou para o quadrado mantendo a testa contra o vidro. Giovanni se aproximou e parou para olhar também a Piazza del Borgo. António, sem se virar: «Estás a ver aquelas mulheres? Mesmo depois da minha morte, eles continuarão a ir à fonte para encher a bacia. Em seguida, eles a equilibrarão sobre a cabeça e, retos, como rainhas Vatusse, retornarão ao calor de sua casa. A vida será a mesma, sempre. É isso que importa." Nesse momento Alberto passou. Ele havia trabalhado a vida toda na terra, um verdadeiro fazendeiro, e agora, na velhice, juntava alguma coisa como sapateiro. António acrescentou em tom de admiração: «E depois sinto uma espécie de afecto apaixonado, uma pena de todos. Mesmo para aquele idiota do Alberto. Não nos falamos desde que ele quis me vender aquela cabra aleijada. Recordações? Mas quem sabe se eu estava dando a ele o golpe porque eu queria por nada. Resumindo, agora eu abraçaria aquele babaca. Sempre com cara de mártir. No entanto, eu o amo. Sinto pena de sua velhice, do amor silencioso e reservado com que assiste a esposa. Ele a mantém como uma rainha, aquela meia-bruxa. Mas eu a abraçaria também. Aquela bruxa de bigode!». Então, lentamente, voltou para a poltrona ao lado da cama, acrescentando com um suspiro: "Para fazer o mundo andar bem, todos nós deveríamos estar perto da morte." Pegou as palavras cruzadas e, como se lesse: «Tio Glauco?».

"Ele está bem", respondeu Giovanni, sentando-se à sua frente na conhecida poltrona sarnenta, de molas quebradas mas muito confortáveis. Ele cruzou as pernas e cruzou os dedos atrás do pescoço. Então ele acrescentou: "Como você está se sentindo hoje?"

"Bom. Um pouco melhor." Então, após um suspiro, apontando os cotovelos nos apoios de braços para se erguer e avançar, em voz baixa: «Tenho que te contar uma coisa que vai te parecer estranha, talvez maluca, mas é muito importante para mim. .que estou morrendo. Perdoe-me se falo com você grosseiramente, mas não posso ser aproximado, tudo deve ser claro". 

Giovanni também se inclinou para a frente. Antonio, em voz baixa, para evitar que Dora ouvisse, continuou entre mil pausas embaraçadas: «A ideia de morrer tornou-se uma obsessão. Mal posso esperar para me livrar dele. Sim, estou com medo, mas digo... milhares de pessoas morrem todos os dias. Se os outros podem fazer, eu também vou... Mas não é disso que eu quero falar com você... não sei por onde começar... É sobre a Dora... Você sabe como acontece, depois de um tempo você está casado. tudo se torna um hábito. E sua esposa não a trata mais como uma rainha... mas como uma serva. Em suma, estou cheio de remorso. Você estava certo em não se casar..."

"Não me casei porque não pude."

"Cale a boca, diga antes que você nunca quis me ouvir. Mas deixe-me dizer-lhe, antes que Dora entre... Outra noite tive uma dor insuportável. Ele não me deixou sozinho nem por um momento. Ela é tão querida, amorosa. Mas você sabe disso… Resumindo, em maio passado, eu já estava doente, fiz ela trazer um buquê de flores: era aniversário dela. Escrevi uma frase de amor no bilhete... sem assinar... Achei mais divertido despertar a curiosidade, e depois contar a verdade... Anna, a mulher do marechal, estava na cozinha quando o recebeu . Ele só confia nela. Em suma, para o amante misterioso, todos pensavam neles, exceto eu. Eu senti tudo. Anna fantasiou e colocou o prefeito, a guarda municipal na lista de possíveis pretendentes e depois riram muito quando acrescentaram o pároco na lista. Com aquelas risadas, me senti tão estranha. E logo compreendi que se Dora soubesse que eu lhe enviara as flores, teria sido como dar-lhe crisântemos. Faz anos que não a ouço tão divertida. Não faço mais parte deste mundo. E é normal. Muito normal... Não tivemos filhos. A única coisa que me consola é que pelo menos ele tem esse amigo. Você também, depois, tente vê-la, não a deixe sozinha como um cachorro."

"Então? Você está com ciúmes?"   

“Não, não, você não entende nada, droga! Eu não sou ciumento. Estou morrendo, para mim não existe mais essa bobagem." Exausto, ele se recostou na cadeira. 

"Eu não posso nem falar."

"Eu não entendo o que você quer me dizer."

"Quero dizer-lhe que nas respostas de minha esposa havia aquele prazer sutil e tímido da lisonja."

"Então você está com ciúmes!"

“Não, meu amigo. Seja sério. Não tenho mais ninguém a quem pedir este favor. Seja sério!"

"Um favor?!"

"Sim, um favor", e ele se inclinou novamente sobre os cotovelos. “Quero deixar vocês com esta lisonja. Eu quero pelo menos isso ter de mim. Não tenho mais nada para lhe dar." E ele caiu de volta na cadeira. Depois de um pouco de silêncio, como para dar tempo à amiga para refletir e entender: «Você tem que mandar um buquê de flores para ela todo aniversário. A próxima será no dia 28 de maio. Eu definitivamente não estarei lá. Você precisa fazer unicamente Esse. E agora sinto muito, não tenho mais forças para falar.'

Eles ficaram em silêncio. Depois de um tempo Giovanni levantou-se e, com a naturalidade de quem se muda em sua própria casa, foi lentamente até a janela. Não aquela que dava para a praça com o chafariz, mas aquela de onde se avistava a casa do tio Glauco, bem pertinho. Antonio disse: "Você está pensando em quantas vezes pintamos aquela parede?" Era verdade, e Giovanni assentiu com um sorriso. Então ela foi até ele. Antonio, de olhos fechados, ofegava, como se tivesse acabado de terminar uma longa corrida. Ele estava caído para trás; cabeça ligeiramente inclinada para um lado. Giovanni tocou sua bochecha com as costas da mão e disse: «Hoje você não se barbeou», e depois: «Até amanhã». Antonio, ainda de olhos fechados, imóvel: «Esqueceste-te?» Giovanni respondeu com um simples nãoe saiu da sala. 

Dora, sentada à mesa da cozinha, descascava as batatas. Ela ainda era bonita. Não muito diferente de quando, no colégio, vencia as competições de salto em distância. Ela não era alta, mas, tão esbelta, parecia tão. O rosto oval ainda mantinha a graça, talvez pelo nariz pequeno naquele rosto branco, luminoso como o verde dos olhos. Preso atrás do pescoço, um lenço azul claro mantinha seu cabelo grisalho preso. Ele sempre usava macacão com suspensórios. De longe, ele parecia um trabalhador. Um metalúrgico. Mas de perto era um prazer ver o quanto aquele uniforme masculino contrastava com a feminilidade de seu pescoço longo e elegante e seu sorriso econômico, mas sempre franco e hospitaleiro. Suas maneiras delicadas, imponentes e compostas tinham algo de modesto que também transparecia em sua voz. Aquelas costas sempre retas, como as de uma atleta, davam-lhe uma presença séria, quase austera, mesmo em momentos como este: sentar para descascar batatas. 

Ela se levantou imediatamente, como se tivesse sido pega fazendo algo proibido. Enxugou as mãos no pano de prato que estava sobre a mesa e, sem falar, foi até a porta. Giovanni saiu retribuindo o sorriso que Dora acabara de começar mantendo a porta aberta e olhando para o chão. Foi de pouquíssimas palavras. Qualquer um, não a conhecendo, a teria tomado por surda e muda. 

Estava úmido e frio lá fora. Giovanni se virou para olhar a fachada da casa de Antonio. Ele pensou que logo eles iriam colar o cartaz de sua morte. Ele imaginou quando eles colocariam os seus próprios. Não mais do que cinco ou seis pessoas iriam ao funeral. Todo aquele sofrimento e amor, todas as memórias seriam perdidas. Na aldeia era o único que não tinha apelido porque era um homem opaco, de contornos imprecisos, era invisível, inexistente. Às vezes ele pensava que já estava morto. Enquanto subia a rua de Tullio refletia sobre tudo isso e parecia-lhe que a vida o havia esquecido.

Tio Glauco pelo menos uma vez por dia visitava Antonio, que sozinho falava abertamente de sua morte iminente como se fosse o enredo de um filme. Entre outras coisas combinaram que, depois do enterro, naquela mesma noite, tio Glauco teria de manter uma vela acesa perto da janela. Antonio desligava três vezes seguidas. Uma saudação, um sinal de que a vida continua ali. 

Eles se encontraram em outras noites. Em uma das últimas Giovanni foi com tio Glauco e Pasqualino, o filósofo. Não houve silêncios constrangedores desta vez. António estava entusiasmado. Ele sempre falou. Lembrou-se uma a uma das histórias romanas do tio Glauco. Ele os recebeu de segunda mão de Umberto, irmão mais novo de Giovanni. Lembrou-se dos primeiros amores nascidos em torno da fonte da praça do Borgo. Em torno dela havia começado a história com sua esposa. 

Ao sair, pegou no braço do tio Glauco e disse-lhe: «Recomendo a vela!». E ele explodiu em uma gargalhada. Assim que saiu, Pasqualino comentou: "Será bom que haja vida após a morte?"

«Há aqueles que estão andando na rua, mas já estão mortos», respondeu Giovanni.

Eles se despediram e cada um tomou uma direção diferente. O farmacêutico sabia que assim que voltasse para casa, e abrisse a porta da frente, sentiria aquele cheiro de alfaiataria, de antigamente, das roupas guardadas nos guarda-roupas para o afagador. 

***

A primavera chegou. Antonio havia sido sepultado na capela da família no final de janeiro. 

Dora antes de dormir olhou a vela acesa na casa do tio Glauco. Atrás da janela, parecia-lhe que ele acenava em algum tipo de saudação. Mas o tempo passou e o desejo de se desvencilhar das lembranças da doença do marido começou a penetrar em seu coração, antes mesmo de sua mente.

Giovanni cumpriu a promessa: mandou flores para Dora no aniversário dela. E isso, também graças ao vento primaveril, reativou a imaginação enferrujada de Dora, mas sobretudo inflamou a de Anna, que começou a fermentar e extrair as hipóteses mais absurdas, como de um chapéu de mágico. 

Uma noite, depois de ter ido à casa de tio Glauco, Giovanni passou por Dora para entregar uns remédios. Seu rosto estava vermelho de febre. Antes de sair, parado à porta enquanto lhe dava um último conselho, refletiu que Dora não pronunciara uma só palavra desde que ele entrara. Ele a aconselhou a se cobrir melhor porque a temperatura havia caído. Então aconteceu que ela, ainda sem falar, pegou um suéter colocado em uma cadeira próxima e o vestiu na frente dele. Era de lã, Havana claro, e talvez tivesse encolhido devido à lavagem contínua. Então Dora, acompanhando os movimentos com caretas engraçadas pelos esforços, primeiro pôs a cabeça para dentro, depois os braços esticando-os. Por alguns segundos a camisola manteve-se apertada e enrolada como um donut, sob as axilas e sobre o peito que, dessa forma, estrangulado, realçava toda a sua consistência sólida e abundante. Então ele finalmente puxou para baixo a bainha do suéter que a cobria até os quadris. 

Aquele número de ginástica artística fez com que o corpo de Dora exalasse um cheiro forte e cheio de mulher que atingiu nosso herói, derretendo em suas veias uma alegria ansiosa. 

O farmacêutico saiu com muita vontade de assobiar. Ele estava satisfeito, mas não sabia o quê. Devagar, cautelosamente, com medo de que o clima diminuísse, ele subiu a encosta. Das casas do Borgo, como uma névoa mágica, o cheiro de carne salteada pairava sobre a praça. 

A partir desse dia, Giovanni passou a frequentar com mais frequência a casa de Dora. que o acolheu sem dizer uma palavra, mas com um sorriso amável e fraterno. As poucas vezes que ele falou, foi como colocar bálsamo em uma ferida. Suas frases chegavam aos ouvidos do farmacêutico em forma de canção, com a suavidade encantadora do hipnotizador. As suas raras e curtas falas pareciam-lhe agora transbordantes de significados profundos que escondiam sentimentos elevados não claramente expressos por modéstia ou por sabe-se lá que outras razões nobres. Agora tudo nela, até mesmo um espirro, era uma explosão de graça encantadora. Ele a divertia contando como alguns de seus clientes distorciam os nomes dos remédios. E até um engoliu supositórios acreditando que fossem comprimidos e na farmácia reclamou de como eram amargos. 

Ele sempre se saiu bem no papel de amigo das damas. A sua aparência, que não tinha nada de masculino e nada de feminino, tranquilizava-os, libertava-os de qualquer tipo de competição. 

Eles também falaram sobre o buquê. Dora sorriu envergonhada e confessou que temia que fosse o gesto de algum lunático perigoso. Nosso farmacêutico ficou satisfeito com esse relatório. Gostava de sentar naquela cozinha, sentir o cheiro da casa e olhar as paredes de cada lado da lareira, penduradas em coroas de pimentas secas, como amuletos de uma civilização antiga. Ele entendeu que suas visitas, mesmo que não fossem necessárias, eram bem-vindas. Não o incomodava compará-los, consigo mesmo, com o efeito placebo de uma droga inútil. 

Uma noite, ainda era primavera, o farmacêutico, voltando do tio Glauco, encontrou Dora que segurava um cesto de roupas molhadas para pendurar na frente de casa. Então ele se aventurou em um gesto espontâneo que o surpreendeu: tocou a mão dela e perguntou: "Como vai você?" Ao dizer essas duas palavras, uma ansiedade irrompeu nele que o fez vacilar. Ela não respondeu. Seus lábios se curvaram ligeiramente para o lado. Foi um sorriso. Então ele inclinou a cabeça ligeiramente, como se dissesse "eu passo". Com o coração na garganta, Giovanni recomeçava quando ela falou e disse: « Você vem amanhã? Eu preparo os pimentos recheados». Desta vez foi ele quem respondeu afirmativamente com um sorriso: não conseguia falar. Ele pensou ter ouvido naquele "você vem amanhã?" uma respiração cúmplice, cheia de insinuações. 

Em vez de voltar para casa, parou na entrada de tio Glauco e foi direto para o pomar de cerejeiras. O cheiro das acácias era tão intenso que dava vertigem. O ar estava quente. Um caminho arborizado começava no jardim, usado apenas por quem estava em casa. Mais abaixo ligava a uma pequena estrada que descia até ao "fossato": uma ribeira activa apenas no Inverno. No verão reduzia-se a pequenas lagoas povoadas por girinos e grilos cantores. 

A densa escuridão forneceu à mente de Giovanni as imagens que ele gostava de lembrar. Antes de chegar à estrada, no meio do caminho, a vegetação se adensava e havia um trecho onde os galhos das árvores que ficavam nas laterais se entrelaçavam no topo formando uma espécie de abóbada. Então foi como passar por um túnel. Chamaram-lhe "caverna". Giovanni, no escuro, tornou a vê-lo como era na primavera: grupos de jacintos brancos e roxos flanqueavam o início do caminho que levava à estrada. Mais abaixo, tapetes de prímulas, ciclâmens e margaridas davam cor. Entrar naquela avenida era como entrar na pintura de um pintor impressionista. No verão, quando estava sufocante, fazia frio na caverna. O farfalhar das folhas secas do ano anterior sob os sapatos, o zumbido ensurdecedor e hipnótico, misturado com o chilrear dos mil pássaros que ali faziam seus ninhos, tornavam-no um lugar encantado, onde os meninos do Borgo soltavam a imaginação para brincar dentro de histórias fora deste mundo. Quando alguém queria fazer algo transgressor, ia para a "caverna": a transgressão consistia em subir em árvores. O que era estritamente proibido. Foram colocar pão molhado nos ninhos: cada um tinha o seu para cuidar. Foi ali que, pouco menos de cinquenta anos antes, Giovanni havia dado um beijo na bochecha de Dora, assim, de repente. Talvez ela nem tivesse notado. Ele havia pensado nisso por anos. 

As visitas de John continuaram. Dora demonstrou prazer em recebê-los, mas nada mais. 

O inverno chegou. Um dia, o marechal, convidado para jantar com sua esposa Anna, foi à casa de Dora após seu passeio noturno. Ele raramente era visto por aí. Alto, magro e ereto como um fuso, ele conservava a boa aparência de um velho que permanece jovem. Com as pessoas mantinha o tom sério e recatado de quando estava de serviço. Mas ele era capaz de sorrir e dizer algumas palavras sem importância, de vez em quando. Sua esposa Anna estava lá desde o início da tarde. As conversas giraram em torno da arrecadação de fundos para a nova torre da igreja. As contas não batiam. Trapaça de Parson? Era o assunto preferido de Anna que, entre outras coisas, insistia que fora ele, o pároco, quem enviara as flores. O rosto de Dora alternava sorrisos incertos de tolerância cortês e resignada: ela respeitava o pároco, Anna o odiava, assim como o odiava seu pai, o tabelião, que por sua vez era odiado e temido por toda a cidade. 

Quando o marechal entrou, as lentilhas já estavam fervendo há algum tempo no caldeirão pendurado no gancho da lareira. Dora, na ponta dos pés, tentava pegar o saquinho de sal na prateleira de cima do aparador, só conseguia tocá-lo com a ponta dos dedos, empurrando-o cada vez mais para dentro. O marechal foi em seu auxílio pela cavalaria, estendeu-se atrás dela e pegou o saco de sal. Essa comoção criou uma profunda perturbação na alma frágil e indefesa de Dora: por um momento o marechal, sem nenhuma intenção, tocou a parte inferior das costas de Dora. Foi apenas um momento, mas Dora dormiu pouco naquela noite, sem saber se o marechal havia pecado inocentemente ou com premeditação. E durante toda a noite ela não olhou para ele, e suas bochechas permaneceram rosadas, como quando ela competia nos tempos de escola secundária.

Assim, enquanto crescia o número de visitas de Giovanni, crescia no peito de Dora uma turbulência ansiosa por causa do episódio com o marechal. Ele tinha que contar a alguém sobre isso. E uma manhã, no meio do padeiro que passara para a habitual entrega de pão, Dora mandou um bilhete ao farmacêutico: descobri quem me mandouàs flores. Eu vou esperar por você esta noite. Giovanni sentiu-se desmascarado e, ainda por cima, interpretou aquele "te espero esta noite" como uma declaração de amor. A ansiedade o assaltou. Como ele deveria se comportar? Suas experiências amorosas vinham exclusivamente dos filmes que tio Glauco contava. 

Tirou o paletó do armário que ainda cheirava um pouco a naftalina. 

Ele o guardou na primavera. Pôs as mãos nos bolsos e, ao descer a rua do Tarcísio, envolto naquele novo calor, sentiu uma leve euforia, uma renovada disposição para a amizade, para um novo entendimento com o mundo inteiro. Cheirava a lavanda. Ele havia ido ao barbeiro que também cortou seu cabelo. Pensou em seu amigo Antonio. Ele sabia que tinha a aprovação dela. Ele mesmo o havia aconselhado a não "deixá-la sozinha como um cachorro": suas palavras. 

Um cheiro reconfortante de castanhas assadas emanava da casa de Tullio.

Ao bater na porta de Dora, Giovanni temeu que suas orelhas pegassem fogo. Ele tentou rejeitar a sensação desagradável de se sentir disfarçado de convidado, e não de noivo. Dora empurrou a cadeira para o lado para convidá-lo a se sentar. Sobre a mesa, evitando olhá-lo, colocou a bandeja de neve e a habitual garrafa de Anisette. Tudo aconteceu sem o menor barulho e no silêncio mais absoluto de ambos. Não vestia o macacão de metalúrgico, mas trazia um lenço na cabeça que a fazia parecer uma camponesa. 

De repente, Dora disse a ele que foi o marechal quem lhe enviou as flores. Ela tinha certeza disso. Giovanni estava sem fôlego, com metade da neve na boca, imóvel. Dora continuou a falar. Giovanni entendeu uma palavra em dez. Ouviu: «É incrível... O marido da minha melhor amiga... Não tenho coragem de olhá-la...» E, no entanto, mesmo atordoado por aquele estrondo de vogais e consoantes que lhe raspavam a cabeça, podia ver muito claramente o que estava acontecendo o que ele temia, e por isso manteve bem escondido nas camadas mais profundas de seu cérebro. Dora nunca poderia ter se apaixonado por ele. Em outras ocasiões experimentou, de formas diferentes, a mesma humilhação, a mesma angústia. E como das outras vezes, quis se esconder, fugir, para não deixar aquela história ruim chegar até ele.

À porta, antes de fechar a porta, Dora implorou-lhe que voltasse para vê-la, porque agora mais do que nunca precisava do apoio de um amigo sincero e leal. Giovanni, sozinho, no meio da praça, não sabia se devia subir ou descer. Nesse momento surgiu à sua frente o rosto de Alfredo, o sapateiro, que o cumprimentou pegando-lhe nas mãos, quase como se quisesse beijá-las, e falou-lhe mantendo-as junto ao peito, como se ele queria manter algo próprio. Contou-lhe da amizade que tinha com o pai, a quem abençoou por ter gerado um filho tão bom e inteligente. E por fim, soprando-lhe o bafo de cipollino na cara, pediu-lhe que visse a sua mulher doente. E ele o arrastou segurando suas mãos. Giovanni não entendia nada, não falava, encontrava-se dentro do quarto onde jazia a mulher de Alfredo, que parecia morta. Tanto que, ao abrir os olhos, Giovanni deu um pulo e percebeu o que estava por vir. Mais tarde, ele lembrou que aconselhou beber vinho fervido para tosse e engolir imediatamente dois comprimidos de aspirina. 

Alfredo mostrou a ele uma foto amarela com caruncho mordendo as bordas. Estava cheio de pontos pretos deixados por moscas: "Agora estamos velhos, com a pele pendurada, mas quando éramos jovens éramos diferentes." Era a foto do casamento dela. "Você vê? Minha esposa era uma flor. E sempre a tratei como uma flor porque para mim, doutora, é como se todos esses anos não tivessem passado. Tivemos sete filhos. Tudo resolvido, mas longe. Ficamos sozinhos. Isso não importa. Nós nos amamos." E depois de um tempo: «Então não é sério?».

"Não, vocês vão ficar juntos por muitos mais anos."  

“Bendito seja a tua mãe que te deu à luz. Abençoado seja você." E beijou suas mãos. 

Saiu daquela casa mais consciente do que acontecia na casa de Dora. Ele estava exausto, mal conseguia andar. Mas ele já havia reentrado na vida dela, com a qual, embora infernal, ele estava mais familiarizado. 

Ele se aproximou da fonte. Do centro da praça avistavam-se as cozinhas: o coração de cada casa. Era hora do jantar. Além das cortinas das janelas iluminadas, moviam-se sombras anônimas. Foram as famílias. Ruídos de pratos, de cadeiras sendo movidas, vozes, gargalhadas: naquelas casas a vida cantava sua canção. Giovanni foi proibido de acessar aquele maravilhoso carrossel humano. Começou a subir, devagar, curvado, como se carregasse nos ombros todo o peso da futilidade de sua existência. Ele se virou para olhar a praça. Foi lá que quando criança ele brincou de médico, amarelinha, esconde-esconde e correr atrás um do outro o tempo todo. Pois os meninos do Borgo perseguindo uns aos outros tinham sido um movimento perpétuo. Naquela época, o Borgo estava sempre em festa, cheio de vida. No verão, no final da tarde, quando o sol parava de queimar, junto com as brincadeiras das crianças, começavam as idas e vindas das galinhas, patos e outros animais de casa, que rodopiavam entre cavalariças e casas, vagando sem rumo, como turistas distraídos e indecisos numa rua fervilhante da cidade, inundando a praça empedrada, na luz púrpura do entardecer. Então, quando escureceu, como em uma vila de fadas, um brilho pálido de uma lâmpada de carboneto apareceu nas janelas, testemunhando uma vida frugal e íntima. O coração do Borgo era a sua praça, que lhe parecia maior, mais vasta e mais magnífica quando era pequeno. A vida do Borgo gravitava em torno da fonte. Enquanto esperava que a bacia acobreada se enchesse de água, as novidades mais banais da vila traduziam-se em fofocas coloridas, e o amante podia trocar palavras furtivas e entrecortadas com a namorada, que entretanto em casa esvaziara a bacia para ir buscar água, a desculpa para voltar à fonte. 

Nosso herói suspirou. Ele não tinha mais forças. Ele se sentou no parapeito de uma janela fechada no andar térreo. Na casa de Tullio, alguém contava uma história espirituosa. Antes de continuar a subir, ele olhou para trás mais uma vez. Seus olhos viram todos os seus companheiros, um por um, brincando ao redor da fonte. “A felicidade pertence a você enquanto você quiser correr”, pensou. 

E pensou ter visto também uma bola de trapos, que, rolando pela praça, carregava consigo bandos de crianças com gritos histéricos, como bandos de andorinhas na primavera.

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John Bucci (Alanno, 1944) é um fotógrafo de rua que fez sua a frase de Willy Ronis: “Je n'ai jamais poursuivi l'insolite, le jamais vu, l'extraordinaire, mais bien ce qu'il ya de plus typique dansnotre existence quotidienne, dans quelque lieu que je me trouve… Quêtesincère et passionnée des modestes beautés de la vie ordinaire”. Bucci é autor de três livros de fotografia e escreve para teatro. Entre seus textos de ficção O trem para Yelets (2010) e Compre também cebolas (2019).

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