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Brasil, ex-ministro Serra: "Só a pandemia impede a deposição de Bolsonaro"

ENTREVISTA COM JOSE' SERRA, economista, ex-ministro e duas vezes candidato à presidência do Brasil: "Bolsonaro é um perigo para as instituições, mas impeachment hoje não é viável" - "Social-democratas e esquerda devem formar uma frente comum contra Bolsonaro" – “A submissão a Trump nos isola do mundo, mas as relações Itália-Brasil continuarão sólidas” – “Conheci Renzi em 2016 quando ele era primeiro-ministro: ele representa os valores democráticos, ele é anti-Salvini”.

Brasil, ex-ministro Serra: "Só a pandemia impede a deposição de Bolsonaro"

Embora o coronavírus galope no Brasil (mais de 50.000 mortos e um milhão de infectados) e o presidente Jair Bolsonaro ameace assumir plenos poderes, é a própria pandemia que impede o afastamento do presidente: “Parece haver razões para prosseguir com um processo de impeachment, mas nesse momento de pandemia, que é um fator adicional de preocupação para o comportamento da presidente, não há ambiente político propício”, argumenta. José Serra, senador do Partido Social Democrata Brasileiro, entrevistado pelo FIRSTonline para comentar a situação política e econômica do maior país da América do Sul.

Filho de imigrantes calabresos, Serra, 78 anos, é político de longa data e tem um peso específico importante no cenário brasileiro. Derrotado duas vezes no segundo turno da eleição presidencial pela esquerda, em 2002 por Lula e em 2010 por Dilma Rousseff, estende hoje a mão aos seus antigos adversários e a todas as forças democráticas para formar uma frente comum contra a escalada autoritária do governo: "Devemos nos unir, esta unidade é a ferramenta que temos à nossa disposição e que pode nos levar a uma bom porto".

Ex-prefeito da cidade de São Paulo e governador do estado de São Paulo, com seus 40 milhões de habitantes, é considerado por muitos o melhor Ministro da Saúde (1998-2002) das últimas décadas. Ele também é um economista respeitado, com doutorado pela Cornell University, em Nova York. Como ministro das Relações Exteriores do governo Temer (2016-2017) conheceu o então primeiro-ministro Matteo Renzi, cujos elogios elogia: “Ele representa um ramo da política italiana comprometido com os valores democráticos e a promoção da justiça social”.

Senador, como o senhor avalia o manejo da pandemia por Bolsonaro? A imagem do Brasil está dilacerada?

“Infelizmente, ao invés de buscar exemplos positivos, o Brasil parece ter optado por produzir conflitos internos com a substituição de dois ministros da Saúde em plena pandemia. Mudanças que têm contribuído para a adoção de medidas esfarrapadas e descoordenadas com constantes mudanças de orientação para a população e para as autoridades locais. Este quadro, sem dúvida, causa uma deterioração da imagem do país no exterior e um agravamento na forma como a doença é tratada”.

O governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) do qual você fez parte realizou as grandes privatizações. Depois veio o intervencionismo estatal de Lula e agora a agenda neoliberal de Bolsonaro e seu ministro da economia Paulo Guedes. O que o Brasil precisa para retomar o crescimento econômico e combater a desigualdade?

“Tivemos avanços em cada um desses momentos, mas também retrocessos. Independente da ideologia e agenda de qualquer governo, nossa agenda hoje é a pandemia que desafia ideologias e dogmas para enfrentar a doença e posterior recuperação. O que aprendemos com os governos anteriores é que isso exigirá uma tremenda coordenação entre os atores políticos e econômicos. Só assim conseguiremos superar a altíssima taxa de desemprego e subemprego e a consequente desconfiança dos atores privados para realizar novos investimentos. Devemos lembrar que teremos uma dívida pública elevada e com prazos mais curtos, o que exigirá uma recuperação da atividade e das receitas fiscais para retomar uma trajetória sustentável”.

Enquanto a escalada autoritária de Bolsonaro aumenta com ataques cada vez mais duros a outros poderes, a hipótese de impeachment avança. Existem as condições?

“Os crimes e desvios de conduta do presidente parecem ser muitos quando ele e seus aliados atacam instituições e demonstram pouco apego à democracia. Em tese, parece haver elementos para levar a cabo um processo de impeachment, mas neste momento de pandemia, que é um fator adicional de preocupação para o comportamento do presidente, não há ambiente político favorável. Estamos trabalhando de casa desde março, não sendo possível atender fisicamente e seguir os trâmites exigidos e estabelecidos pela Constituição. Não consigo imaginar um julgamento de impeachment com sessões remotas."

Você foi um dos principais opositores de Lula e do Partido dos Trabalhadores, mas hoje o pedido de união com a esquerda contra Bolsonaro vem de vários quadrantes, inclusive do seu partido (Social Democratas). Qual caminho seguir?

“Além das palavras vulgares que ouvimos a torto e a direito do presidente quando se refere a integrantes de outros poderes, observamos ameaças a outros poderes, ameaças de morte a alguns de seus integrantes e a insistente exigência de restabelecimento do regime militar. , período em que muitos brasileiros perderam a vida e muitos outros como eu tiveram que deixar o país às pressas para não serem mortos ou torturados. Para isso devemos nos unir. Se tivéssemos imaginado que o governo Bolsonaro seguiria esse caminho, muito provavelmente essa união teria ocorrido nas eleições de 2018. Não imaginávamos que uma família e seus amigos pudessem invadir e ameaçar o estado democrático. Se a democracia e as instituições estão em perigo, a única saída é a união como aconteceu na campanha das Diretas Já (movimento popular que em 1983-1984 lutou pelo fim da ditadura). Infelizmente não estamos lidando com um adversário político, mas com um projeto de poder que pode levar a um sério retrocesso institucional”.

Nesta fase histórica, as relações bilaterais prevalecem e os grandes sindicatos enfraquecem. Trump não acredita mais na OTAN, a UE está dividida e o processo de integração do Mercosul está parado. Como ex-ministro das Relações Exteriores, como você avalia essas mudanças internacionais?

"Preocupante. Estamos entrando em conflito com uma região, a União Européia, que é o segundo maior parceiro comercial do Mercosul. Estamos ignorando a importância de um bloco que é o principal investidor estrangeiro no Mercosul e o Brasil o quarto destino desses investimentos. A menos que haja uma mudança de rumo em nossa política externa, que alguns já consideram “política não externa”, o prejuízo econômico causado pelo isolamento será enorme”.

O governo Bolsonaro implementou um significativo reposicionamento geopolítico. A China, principal parceira comercial do Brasil, é alvo constante de ataques do governo. E à medida que nos aproximamos dos EUA e de Israel, nos afastamos da África e de nossos vizinhos latino-americanos. BRICS não se fala mais. Essas mudanças são positivas?

"Absolutamente não. Comportamentos que rompem com importantes parceiros comerciais como a China, que se afastam de países com os quais temos relações comerciais como é o caso da África, de onde vêm muitos de nossos ancestrais, e que ignoram seus vizinhos latino-americanos, são totalmente prejudiciais para a economia e as relações diplomáticas. Tenho a impressão de que a política externa brasileira está mais voltada para a defesa dos interesses dos Estados Unidos, com submissão e idolatria ao presidente Trump, do que do Brasil. É um reposicionamento que nos enfraquece e nos isola do resto do mundo”.

Serra, o primeiro da esquerda, em reunião com o governo italiano

A Itália é um parceiro comercial e industrial histórico para o Brasil e a Europa uma referência cultural e política. Bolsonaro representa uma ameaça a essas relações ou elas vão além da conjuntura atual?

“A relação Brasil-Itália é sólida e, apesar da política externa de Bolsonaro, vai além da situação atual. A Itália é o segundo maior parceiro comercial do Brasil na Europa e um grande investidor no Brasil. Empresas como a Pirelli estão presentes no Brasil há cem anos. Superado o problema "Battisti", voltaram a existir as condições para uma ampla aproximação nos campos político e diplomático. Sempre mantivemos relações de amizade e cooperação bilateral”.

Em 2016, como chanceler, conheceu o governo italiano liderado por Matteo Renzi. Como foram as relações com aquele executivo e qual é a sua opinião sobre o atual governo italiano?

“Renzi visitou o Brasil durante as Olimpíadas do Rio de Janeiro. Passou por São Paulo e Salvador da Bahia. Representa a parte da política italiana comprometida com os valores democráticos e a promoção da justiça social. Nesse sentido, ele é um adversário válido de Salvini, que, ao contrário, tem uma atitude anti-imigração. Acompanho como Conte lidou com a pandemia que atingiu a Itália de forma dramática e seu trabalho como líder da coalizão que reúne partidos de esquerda, centro e M5S. Essa coalizão é positivamente surpreendente porque se mostrou mais estável do que poderíamos imaginar. É um governo que luta para fazer o bem, para dar respostas ao povo italiano”.

Na Europa, a situação na Amazônia também é muito preocupante, devido aos incêndios devastadores e às palavras do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que defende a desregulamentação enquanto as atenções estão voltadas para a Covid. Você está preocupado com a gestão ambiental do governo? E o que pode ser feito pela Amazônia?

“Claro que estou preocupado. A pandemia é uma previsão do que acontecerá com o mundo à medida que as mudanças climáticas se intensificam. Os principais planos de recuperação de empregos e renda após a crise serão por meio da economia verde. A Europa e os EUA já estão fazendo planos como o chamado Green New Deal. Os desafios climáticos certamente impactarão e trarão restrições à necessária expansão do agronegócio brasileiro. O Brasil deve permanecer integrado e desempenhar um papel importante na busca de soluções ambientalmente sustentáveis. Caso contrário, corremos o risco de sofrer sanções econômicas e nos isolar ainda mais no cenário internacional”.

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