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Conto de domingo: "Não quero mais brincar" por DM Gradali

Depois de longas e intrépidas batalhas travadas no salão, na "mesa grande coberta de pedra clara" com seus "soldados atlânticos de brinquedo escala 1:100" verde, uma criança desiste da guerra para perguntas. Os contos de fadas são verdadeiros? E Santa Lúcia, que chega "no lombo de um burro" para trazer "belos presentes", não é mesmo? É realmente "bom ser padeiro, frentista de posto de gasolina ou bombeiro", como sempre se pensou? Talvez tudo seja "um imenso engano". Diego Maria Gradali, com sabor de memorial escrito, conta o conto de fadas mais assustador de todos: a perda da inocência e o início da vida adulta.

Conto de domingo: "Não quero mais brincar" por DM Gradali

Piacenza, um domingo há muitos anos.  

Deviam ser sete da manhã, talvez até antes, quando abri os olhos e percebi que era dia. O início do dia, que tem aquela luz cinza particular que não revela o horário das horas seguintes.  

Minha irmã dormia em sua cama perto da porta do quarto e nossos pais dormiam no quarto maior ao lado. Puffy, meu gato siamês enrolado na cama, acordou comigo naquele exato momento. Acordava sempre com a gente primeiro, aproveitava para comer alguma coisa independente da hora: nunca era cedo para tomar café da manhã.  

Fomos juntos ao banheiro, Puffy para comer e eu para fazer o primeiro xixi do dia, aquele que dá mais satisfação, e enquanto isso eu pensava no que faria nas duas horas que me separavam do café da manhã. Durante alguns meses essa foi a minha estratégia: eu ia para a sala de jantar, arrumava os soldadinhos de chumbo em uma grande mesa forrada com pedra clara, distribuía com cuidado e depois jogava a guerra, por meia hora ou três quartos de hora no máximo. Depois me dediquei ao quebra-cabeça, sempre o mesmo, por mais meia hora, e fiquei esperando que minha mãe se levantasse e me perguntasse se eu queria chá ou leite.  

Enquanto ainda me demorava em frente ao banheiro, me perguntei se não teria sido melhor voltar para baixo do cobertor de lã colorida e tentar dormir um pouco mais, mas sabia que não conseguiria voltar a dormir e provavelmente ficaria entediado, revirando-se na cama como uma minhoca em sua toca.  

Cheguei ao corredor e tirei duas caixas de soldadinhos de chumbo do Atlântico em escala 1:100 do armário da TV, coloquei-as sobre a mesa de pedra e derramei o conteúdo. Cerca de cinquenta miniaturas de dois verdes ligeiramente diferentes caíram: o britânico, um forte verde pinho, e o americano, verde-sálvia escuro. Na verdade, os ingleses e os americanos tinham sido aliados na Segunda Guerra Mundial, mas eu não sabia e nem me importava, fazia-os lutar, todos os domingos, como numa guerra sem sentido, inútil e infinita.  

No exército de soldadinhos ingleses havia quatro operadores de rádio ajoelhados ao lado de seus pesados ​​aparelhos, com o receptor pressionado contra os ouvidos. Sem perceber que era um rádio militar, mantive-os à margem, não pude usá-los, sem entender o que diabos eles estavam fazendo sentados com um telefone na mão no meio da batalha: eles eram os quatro mais inúteis soldados de brinquedo nunca. Logo a seguir, na ordem de insignificantes soldadinhos de chumbo, vieram quatro americanos deitados com um disco na mão, talvez fossem sapadores ou talvez desminadores, para mim pareciam quatro dormindo com um Frisbee entre os dedos.

Eu também havia tentado fazê-los voar, fingindo que aquele Frisbee era um pequeno disco voador ao qual se podia agarrar para fazer vôos curtos, mas rápidos, rastejando sobre as cabeças dos inimigos, porém, não me deixando convencer pela ideia de que alguns poderiam voam e outros não, muitas vezes faziam companhia aos inimigos telefonistas, fora do campo de batalha. Considerando tudo, alinhei vinte americanos contra vinte britânicos, não tinha tanques nem canhões ou jipes, só tinha soldados que acabaram lutando como guerreiros da antiguidade, sem explodir nenhum tiro, mas duelando corpo a corpo com metralhadoras e rifles como eram lanças e espadas. Muitas vezes, entre tantos, escolhi um ao acaso como herói e ele, embora ferido e cansado, resolvia a batalha.  

Naquela manhã me peguei observando-os muito de perto, tão de perto que percebi seus traços mutilados pela fusão apressada do plástico nos moldes e percebi, pela primeira vez, que eram realmente grosseiros, imprecisos, que não têm feições bem definidas, mas apenas dobras esboçadas apenas o suficiente para parecerem narizes e bocas, maçãs do rosto e mentes. Em seguida, havia várias membranas finas de excesso de plástico, correndo em torno de seu corpinho, tornando-o ainda mais implausível; Fiquei surpreso ao perceber que nunca havia notado tudo isso: mas como era possível? Como pude perceber aquelas rugas nos rostos como características prováveis ​​e críveis? Por que nunca os observei com atenção?  

Desde aquela manhã eu nunca seria capaz de imaginá-los como reais. Pena que eu havia notado como eles eram feios: lentamente reconheci as manchas de seus perfis mesmo de longe; pelo contrário, eu só os via, de tão ruim que eu era. E se eles fossem a imaginação desajeitada de um construtor de brinquedos adulto, o que seriam os contos de fadas? E Santa Lúcia, que no lombo de um burro me trouxe lindos presentes, quem era ela? Teria sido muito bom ser padeiro, frentista de posto de gasolina ou bombeiro? Talvez tudo não passasse de uma imensa decepção. 

 Como você é feio! Tão aproximado e imperfeito, com aquele pedestal pesado que não permite mover as pernas, pense se na realidade os soldados tivessem que lutar lastreados com um grande torrão de terra preso aos pés: não faria sentido. Na verdade, você não faz sentido! 

 E assim, de repente, me vi olhando para um exército de soldadinhos de chumbo inúteis, enquanto a luz do dia ainda não brilhava, e me perguntando o que faria até o café da manhã, agora que não tinha mais nada para brincar. Sim, é verdade, consegui completar o quebra-cabeça de sempre, que já sabia de cor, mas havia perdido o entusiasmo: estava acordado há vinte minutos e já estava entediado. Senti os segundos passarem um a um até que, somados, se transformaram em um longo minuto vazio: com os cotovelos apoiados na pedra cinza salpicada de rosa, eu olhava sem vê-los para os soldadinhos de chumbo que tanto gostara e que, a partir daquele momento, eu não sabia que eles estavam mais interessados.  

Se demoro tanto para tomar café da manhã sem brincar e me divertir, quem sabe quanto tempo vai durar a vida quando eu crescer?Não vou mais querer jogar. 

Esse pensamento me entristeceu, eu sentia os segundos e minutos se arrastando um após o outro, nem imaginava quanto tempo seria um dia inteiro sem jogar, muito menos um ano ou dez anos. Foi um tempo infinito, maior do que a vida que já tinha vivido e que me pareceu bastante longa e plena. Pensei nos jogos simples mas bonitos, também nos limites e impedimentos que o nosso teor familiar impunha, mas ainda mais nas descobertas, nas viagens sensacionais até à longínqua Ligúria de Rapallo e algumas vezes até Misano ou Igea Marina, no 'Adriático, lugares quase exóticos para quem, como eu, os viu pela primeira vez. A minha infância passou devagar mas não me aborreci: muitas vezes inventei tudo, o jogo, os objectos para brincar e os seus cenários, praticamente tudo acontecia na minha cabeça e nada fora.  

Como eu faria? Desejei tanto os soldadinhos de chumbo, os carrinhos de brinquedo, os bichinhos de plástico duro da savana, o forte feito de postes e torreões que imaginei sitiado por índios no Oeste, que talvez Santa Lúcia me trouxesse. Talvez.  

Os soldadinhos de chumbo, todos os quarenta na minha frente, estavam lá, prontos para eu brincar e me divertir. "Venha", eles pareciam me dizer, "vamos, vamos começar a lutar, não podemos esperar mais, a batalha começa, estamos prontos, esperamos por este momento desde domingo passado, o que você está esperando ?" 

Estou esperando sentir aquela estranha magia que senti até outro domingo e agora não sinto mais; Espero que a imagem de um chão ardente e fumegante se forme espontaneamente na cabeça; Espero ouvir as bombas explodirem e ver o céu ficar vermelho e cinza de fumaça; Eu espero por qualquer uma dessas emoções, mas elas não vêm, sinto muito, nada acontece. Eu olho para você e nada vem à mente, exceto que você é feio e mal feito. Não posso mais brincar com você, não me divirto mais, estou entediado. Eu gostaria de voltar para a cama, adormecer e acordar daqui a cem anos, já velho, um século passa em um segundo sem nem perceber, porque é assim que acontece à noite e eu não suporto ficar entediado!  

Isso eu pensei naquela manhã. Agora, aos quarenta anos, me surpreendo com minha ingenuidade infantil, mas, mais ainda, por não ter mudado nada. 

O autor

Diego Maria Gradali nasceu em Piacenza em 1968, formou-se em Parma como mestre em arte, estudou psicologia em Pádua. Em 1992 ele embarcou na profissão de publicitário. Trabalha em agência de comunicação própria desde 1999. Desde 2005 que se dedica à escrita, tendo posteriormente retomado a pintura ao fim de mais de vinte anos, participando em diversas exposições e eventos, nos quais se posicionou entre os finalistas.  

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