comparatilhe

Abuso de cargo, onde a reforma leva

A recente reforma do artigo 323 do Código Penal visa representar a resposta à demanda de melhoria da eficiência da máquina pública e reduzir as questões críticas do sistema processual

Abuso de cargo, onde a reforma leva

A reforma deartigo 323 do Código Penal, inserido no decreto-lei 76/2020 com efeitos a partir de 17.7.2020, representa a resposta à questão de tornar a máquina pública mais eficiente. De muitos quadrantes, ela se denunciou a excessiva invasão de investigações em áreas de discricionariedade administrativa que causou a recorrência do "síndrome de assinatura”, que deu origem à reforma do artigo 323.º realizada com a lei 324/1997.

Ainda naqueles anos, os Prefeitos das cidades, em particular, declaravam que o medo de serem processados ​​criminalmente era um dos principais obstáculos à ação da administração pública. Além disso, reclamaram da auto-referencialidade das investigações que foram realizadas sem nunca falar com as pessoas diretamente envolvidas. Por essas razões, o legislador da época não se limitou a influir no caso, expurgando o excesso de poder da conduta material e inserindo o elemento de malícia intencional, mas interveio sobre o que era uma verdadeira patologia processual e que, como veremos, infelizmente continua a perpetuar-se até aos dias de hoje.

Funcionários públicos, prefeitos de cidades, reclamaram ser citado a tribunal sem nunca ter sido citado pelo Ministério Público. Surpreendentemente, as citações chegaram ao juiz criminal sem que o interessado (agora arguido) pudesse explicar o mérito administrativo e a legitimidade da escolha feita na fase de instrução. Isso significava, então como agora, que a maioria dos julgamentos, após ouvir a defesa, resultou em sentenças de absolvição com uma fórmula ampla.

Processos que, muito provavelmente, se tivessem assistido a uma interlocução antecipada entre o Ministério Público e o arguido, nunca teriam iniciado, com considerável benefício tanto da máquina judiciária como da administração pública, suscitados pelos problemas que se colocam sempre que o ação penal é exercida contra funcionário público em exercício.

Ora, justamente para evitar esse curto circuito do processo, o mesmo legislador (1996 - 2001), com a Lei 479/1999 introduziu o art. 415 bis do Código de Processo Penal que obriga o Ministério Público a notificar ao arguido, sob pena de nulidade do pedido de acusação, "o aviso de conclusão das investigações preliminares" que, para além de prever o direito de acesso a todos os documentos de investigação, reconhece ao arguido o direito de ser interrogado pelo Ministério Público ou de requerer a complementação de documentos de investigação para a sua defesa.

Esta regra, apesar da clareza do seu ditado ("Se o suspeito pedir para ser interrogado, o Ministério Público deve proceder") foi efetivamente cancelado por muitos promotores públicos, que pretendia dar uma interpretação puramente burocrática, delegar a execução do acto processual à Polícia Judiciária (muitas vezes sem a investigação), degradando assim a função prejudicial deflacionária para a qual foi introduzida. Interrogar o suspeito pessoalmente não é considerado um dever incontornável por muitos magistrados como eu acho que deveria ser. Não só por uma forma de lealdade do Estado (naquela conjuntura representado pelo magistrado único do Ministério Público) para com o arguido, mas também pelos óbvios benefícios em termos de eficiência do processo penal e credibilidade do sistema judicial .

O interrogatório perante a Polícia Judiciária tem-se revelado, na maioria dos casos, inútil. Os argumentos feitos na primeira pessoa pelo suspeito não chegam ao Ministério Público, que se mantém firme nas suas convicções, promovendo um processo que, na maioria das vezes, poderia ter sido evitado, ou seja, um processo destinado inevitavelmente a terminar com uma sentença de absolvição.

Essa prática distorcida, por sua vez, alimentou a tendência de muitos defensores de se absterem de qualquer interlocução com o Ministério Público durante as investigações, tendo registrado a impermeabilidade prejudicial também quanto às razões de defesa mais documentadas e fundamentadas. Um curto-circuito que multiplicou a celebração de julgamentos que poderiam ter sido evitados se houvesse um debate justo e juridicamente credível de ambas as partes. O resultado foi que, como antes da reforma de 1997, hoje a maioria dos julgamentos por abuso de poder termina com absolvição total.

Pode-se dizer que as questões críticas decorrentes da ampla aplicação do crime de abuso de poder que causa invasões no campo da legítima discricionariedade se devem mais ao desvirtuamento do instrumento processual instituído pelo art. 415 bis cpp e o excessivo caráter genérico do caso. Um legislador atento poderia, com a nova formulação do crime, preocupar-se com os perfis processuais, antes de tudo, estabelecendo expressamente que o interrogatório nos termos do art. 415 bis do Código de Processo Penal deve necessariamente ser realizada presencialmente pelo Ministério Público que conduziu as investigações.

Você verá qual aplicativo ele terá o novo caso do artigo 323.º, que aparece circunscrito a um canto, tendo em conta o valor meramente residual das hipóteses que se podem perseguir. Com efeito, a nova lei limita a conduta aos casos de violação de regras específicas de conduta estabelecidas em lei ou por atos com força de lei e dos quais não haja margem de discricionariedade em relação à anterior, que contemplava a violação de leis ou regulamentos. É claro que a ação administrativa é por definição discricionária, portanto, o legislador parece dizer, onde há arbítrio não pode haver relevância criminal: pode haver eventual ilegitimidade administrativa (a reflexão não pode deixar de se estender à recente desregulamentação no domínio dos concursos e às relações com o crime de fraude em licitações).

O novo artigo 323.º do Código Penal pode ser definido omissão ou descumprimento de atos oficiais destinados a favorecer ou prejudicar terceiros. Isso porque, eliminada a discricionariedade, o abuso de função seria configurável quando o funcionário público, em descumprimento de obrigação legal, dolosamente obtiver vantagem pecuniária injusta para si ou para outrem ou causar a outrem dano injusto, mas a violação de e a lei também integra a sua omissão. A circunstância de não ter sido alterada a parte da conduta que sanciona o conflito de interesses e que impõe a obrigação de abstenção. Neste caso, a violação da lei integra precisamente uma omissão do dever de abstenção. Obrigação que, por definição, exclui qualquer arbítrio.

Comente