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Roma, teatro: a partir de hoje Shakespeare com o "mercador de Veneza"

De quinta-feira, 24 de agosto a 10 de setembro (com exceção de 28 de agosto e 4 de setembro), as figuras míticas de Shylock, o mercador Antonio, Bassanio e sua amada Porzia animarão o palco do Silvano Toti Globe Theatre em Villa Borghese.

Roma, teatro: a partir de hoje Shakespeare com o "mercador de Veneza"

No palco do Silvano Toti Globe Theatre a obra de William Shakespeare “O Mercador de Veneza” traduzida e dirigida por Loredana Scaramella. De quinta-feira, 24 de agosto, a 10 de setembro (com exceção de 28 de agosto e 4 de setembro), as figuras míticas de Shylock, o comerciante Antonio, Bassanio e sua amada Porzia animarão o palco do oval da Villa Borghese com os intrincados eventos entre Veneza e Belmonte.

Nos intervalos de segunda-feira, 28 de agosto e segunda-feira, 4 de setembro, estará de volta ao palco o espetáculo idealizado e dirigido por Melania Giglio "Sonetti d'Amore", uma viagem pelos mais belos versos de William Shakespeare acompanhados de uma rica contaminação musical: de Marvin Gaye a Amy Winehouse, de Leonard Cohen a Alanis Morissette.

NOTAS DO DIRETOR

Nas muitas versões do O Mercador de Veneza que tenho visto, o personagem de Shylock, grande na concepção, escrita e pelo fascínio criado em torno dele por interpretações extraordinárias, sempre teve uma posição central, tanto que muitas vezes cria no público de hoje o equívoco de que ele é o protagonista do trabalho. Antonio, o comerciante do título, se transformou em um papel subordinado e desbotado. Mas a indicação de Shakespeare é diferente, e é um caminho que merece ser percorrido. Além disso, a memória da terrível experiência do Holocausto instintivamente nos leva a considerar O Mercador de Veneza como ponto de partida para uma reflexão sobre a discriminação antissemita sofrida em diversas ocasiões pelo povo judeu, da qual Shylock se torna a personificação ideal. É isso que acentuou nas últimas décadas o colorido dramático da encenação de um texto que tem um caráter cômico. A aposta da nossa encenação é recuperar esta personagem, centrando-nos na história de uma reflexão sobre a justiça, carregada de aguda ironia sobre o amor e o dinheiro, deslocando a ambientação para os anos entre finais do século XIX e inícios do século XX, que foram, tal como o Período elizabetano, anos eufóricos e contraditórios, cheios de mudanças de hábitos, novidades e progressos luminosos, misturados com as sementes silenciosas de um futuro sombrio. O mar que divide Veneza e Belmonte, os lugares da história. Um píer branco brilhando à luz do dia abriga homens trabalhadores, comerciantes e industriais. A Londres do século XVI, escondida atrás da aparência da cidade lagunar descrita por Shakespeare, move-se assim para uma fantasia da Belle Époque, com um sabor proustiano.

Belmonte assume a forma do camarim de uma grande actriz de fin de siècle, e Porzia, forçada a uma castidade indesejada, é uma fantasista que se apresenta aos seus pretendentes com disfarces sempre novos, para criar um feminino indescritível, uma espécie de encarnação do teatro, sem limite de idade ou gênero. O seu reino é aquele lugar indefinido onde se colocam as fantasias intemporais do amor perfeito, temperadas com o jogo infantil de vestir, dança, canções leves e doces tingidas com cadências repentinas de tango. Um cabaré sensual, atravessado por tons racistas aparentemente ingênuos. Do contraste entre essas atmosferas sonoras e os motivos kletzmer que acompanham as cenas mais dramáticas, forma-se a textura musical da comédia, que se estende em seu aspecto visual até o início da década de XNUMX, quando as raízes da tragédia amadurecem por trás de um cenário de riqueza. e uma loucura emocionante. Veneza, o local de trabalho, e Belmonte, o berço do amor, estão unidos por uma cola universal: o dinheiro, o verdadeiro combustível da história. É por meio do dinheiro que os protagonistas tentam manifestar e realizar seus desejos, numa rodada em que um capital é emprestado pelo judeu Shylock a Bassanio, graças ao mercador Antonio que se compromete a garantir o empréstimo com sua carne. É gasto por Bassanio para conquistar Porzia, a rica herdeira de Belmonte, prêmio da loteria de caixões com base no qual ele se casará, que por sua vez emprestará seu dinheiro a Bassanio para livrar Antonio, agora falido, do risco de ver sua ameaça estipulada no contrato: o corte de meio quilo de carne. Cerca de quatrocentos gramas, pouco mais do que o peso de um coração, colocados em jogo num pacto em que carne, dinheiro e amor se confundem e revelam a sua identidade simbólica de forma freudiana, fonte de conflitos, ambiguidades, desejos e medos. Que impulsos animam o quarteto de protagonistas e fazem dançar seus capitéis? Shylock empresta seu dinheiro a Antonio, seu adversário pela religião e pela ética profissional, porque espera comprar algo que vale mais para ele do que qualquer outro: sua dignidade ofendida por Antonio e depois por Lorenzo, o sequestrador de sua filha Jéssica, e pela própria Jéssica que esvazia sua casa de dinheiro e joias, negando sua religião. Antonio usa os lucros de seus negócios para satisfazer os desejos de seu amigo Bassânio. Amigo, mas certamente também amado, único interlocutor capaz de iluminar a melancolia da solidão do Mercador com uma luz que seria hipócrita não chamar de amor. Esse sentimento socialmente inominável leva Antonio a aceitar o pacto com Shylock, por quem sente um profundo ódio, motivado pela condenação da usura praticada pelo judeu. Por trás da aparente leveza com que aceita o contrato, Antonio arrisca seu dinheiro e sua carne por Bassanio, como que para gritar seu amor em público sem palavras, num impulso libidinal e mortal. Bassanio, por sua vez, persegue o sonho de um amor com um cânone inverso: ele quer ser amado e o dinheiro serve para ser mais atraente como objeto de amor. E Porzia, por mais culta e empreendedora que seja, coloca-se, sua casa e todos os seus bens nas mãos de Bassanio para conquistar o direito inalienável de amá-lo.

Catástrofe ou final feliz? Talvez nenhum dos dois. Apesar da lei, Shylock não obtém justiça e seu dinheiro vai para engordar os cofres do estado, Antonio não tem seu martírio, Bassanio caminha para um casamento turbulento. A própria Portia, com sua excelente atuação en travesti como Bellario, para si só ganha a consciência da traição. O conto de Belmonte não sobrevive sem a certeza da confiança e, ao regressar do julgamento, a ilha do amor transforma-se num interior burguês, onde se definem comicamente os equilíbrios das relações entre todos os veteranos da aventura veneziana. Longe vão as ilusões, à luz da realidade uma nova comunidade pode ser vislumbrada.

Imagem: Merchant Venice ®Marco Borrelli

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