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Sempre proteja as instituições: a atualidade de Burke

Considerado o emblema do conservadorismo anglo-saxão, o pensador irlandês do século XVIII merece uma “reabilitação” pelo seu liberalismo e pela sua fé no reformismo progressivo. Uma lição atual: ele teria criticado duramente Trump hoje

Sempre proteja as instituições: a atualidade de Burke

A história do pensamento ainda não fez justiça a Edmund Burke. Considerado o mais conservador dos conservadores, o arquiinimigo de todas as mudanças, ele é bem diferente desse retrato.

Olhando atentamente para seu pensamento, Burke é tão conservador em alguns aspectos quanto liberal em outros, relacionando o significado dos dois termos à época em que viveu o pensador irlandês.

Sua obra mais importante e conhecida, Reflexões sobre a Revolução na França, tornou-se imediatamente o manifesto dos conservadores europeus. Infelizmente, essa conotação ofuscou outros aspectos igualmente significativos da atividade política e do pensamento de Edmund Burke.

Se não fosse pelo Reflexões, hoje Burke ocuparia um lugar menos designado e mais dialético na história da doutrina política. Mesmo que nos Estados Unidos a atenção para com Burke tenha reacendeu ao contrário do que acontece em seu país e na Europa.

Aqui Burke permanece firmemente no campo conservador, como sua recente biografia escrita por Jesse Norman - um membro conservador da Câmara dos Comuns - intitulada Edmund Burke: o primeiro conservador.

A QUEM PERTENCE BURKE?

Em um longo artigo de 2013 sobre “The New Yorker” Adam Gopnik se pergunta exatamente a quem Burke pertence e percebe a originalidade e a natureza extraordinária de seu pensamento, mesmo que seja difícil definir o que o torna tão extraordinário. Justamente essa dificuldade de definição deixa espaço para muitas orientações interpretativas. 

Deve-se acrescentar que, mesmo na vida privada, Burke era original e excêntrico e também extravagante em seus gostos. Irlandês, ruivo, católico, vivia em um país onde os católicos eram discriminados e marginalizados da vida pública e do poder de forma semelhante ao que ocorre nos Estados Unidos com os afro-americanos.

Uma tentativa de melhor colocar Burke na história da doutrina política foi feita pelo jovem historiador Yuval Levin em seu O Grande Debate: Edmund Burke, Thomas Paine e o Nascimento da Direita e da Esquerda (2013). Para Levin, os dois pensadores, arquirrivais na época, estão no mesmo leito do liberalismo clássico. 

Eles apenas veem de forma diferente. Paine o vê como um físico newtoniano. A sociedade deve ser continuamente remodelada com base no pensamento racional de leis abstratas e no método científico. A abordagem de Burke é a da teoria da evolução, onde as mutações são graduais e refletem a sabedoria herdada das espécies. Os seres humanos, nesta visão, vivem em uma complexa rede de relações sociais que nos pré-existem e nos ultrapassam.

POLÍTICO DE BURKE

Um traço do comportamento e da visão política de Burke tem, de fato, como veremos melhor, um momento bastante atual no debate político contemporâneo. Esta é a clara distinção que ele faz entre as instituições e quem, no momento, as ocupa.

A crítica dura ou a luta tenaz contra o sujeito que ocupa uma instituição nunca deve envolver a própria instituição, que deve ficar de fora da batalha política, mesmo quando esta se torna polarizada ou extremada. Duas tendências que caracterizam o cenário político contemporâneo em muitos países. Por exemplo, Burke teria ficado escandalizado ao ouvir slogans como "Não é meu presidente".

Se a luta política acabar superando essa fronteira entre a instituição e o ocupante, a sorte está lançada. A saída é o que Burke chama de “República dos regicidas”, ou seja, um Estado sem mais instituições de referência onde prevaleça a lei do mais forte e não mais a lei da constituição.

UM CONSERVADORISMO TENDENTIALMENTE LIBERAL

Talvez o pensamento de Burke represente o conservadorismo em seu nível mais alto e equilibrado de progressividade.

Por exemplo, Burke simpatizava com as reivindicações das colônias americanas, mas não (como seu amigo Thomas Paine) era um defensor entusiástico de sua independência; detestava a revolução francesa, mas estava hipnotizado pela americana, criticava duramente a política de Jorge III, mas era um defensor inflexível da instituição monárquica; opôs-se fortemente à política de roubo da Companhia da Índia, mas permaneceu um firme defensor do Império Britânico; ele saudava uma emancipação gradual dos escravos, mas não acreditava, na verdade abominava, o conceito de igualdade.

Ainda vivo, Edmund Burke estava fora de cogitação.

A REVOLUÇÃO FRANCESA SEGUNDO BURKE

O nome de Burke, como dissemos, está intimamente ligado à sua crítica radical à Revolução Francesa. Reflexões sobre a Revolução na França foi publicado em novembro de 1790, um ano após a queda da Bastilha, mas antes do advento do Terror.

Na época ainda parecia possível que a continuidade da monarquia, de forma constitucional, poupasse a França do banho de sangue e do apocalipse institucional que de fato ocorreu sob o Terror.

Apenas Burke no Reflexões ele previu, ao contrário da maioria de seus contemporâneos, a deriva da revolução, as execuções de Luís XVI e Maria Antonieta; a escassez de líderes revolucionários moderados; a guilhotina nas praças, o advento de uma ditadura militar como a de Napoleão; a longa guerra européia em que a "República do Regicídio" tentaria subjugar outras nações em nome da liberdade, da fraternidade e da igualdade.

Uma das figuras mais significativas da história francesa do século XX e da grandeza, Charles de Gaulle, não estava longe de pensar como Burke sobre o desenvolvimento da Revolução Francesa, como Patrice Gueniffey mostra em seu livro muito recente Napoleão e de Gaulle (Harvard University Press, 2020) É justo dizer que o trabalho de Burke influenciou não apenas seus contemporâneos, mas também as gerações seguintes.

Como Edmund Burke antecipou com tanta precisão o curso dos acontecimentos da revolução na França e, por extensão, de outras revoluções posteriores que visavam estabelecer sociedades mais justas e igualitárias e, em vez disso, acabaram apenas produzindo despotismo e terror?

Esta é a pergunta que Bret Stephens, colunista do "New York Times" se faz, como alavanca para desenvolver um raciocínio sobre a situação atual - especialmente na América. Sua intervenção no jornal de Nova York, intitulada Por que Edmund Burke ainda importa, definitivamente vale o tempo que leva para lê-lo. Então vamos deixar a palavra para Stephens.

Boa leitura!

Edmund Burk: ilustração de John Jay Caguay apareceu no “The New Yorker” de 22 de julho de 2013 acompanhando um artigo de Adam Gopnik intitulado “O homem certo”.

A TAPEÇARIA SOCIAL E POLÍTICA

A questão deve ser abordada à luz das duas correntes ideológicas mais importantes do mundo atual: o populismo, que dominou grande parte do mundo conversacional nos últimos cinco anos, e o progressismo radical que ameaça subjugar o outro lado da política espectro, ou seja, a esquerda.

Subjacente à visão de sociedade política de Burke está uma profunda preocupação com a fragilidade das instituições que podem ser aniquiladas em nome de uma nova ordem moral, nacionalismo e revolução social.

Estados, sociedades e identidades não são construções de blocos de Lego para serem desmontadas e remontadas à vontade. Eles são mais como tapeçarias, transmitidas de geração em geração, para serem cerzidos cuidadosamente em uma borda esfiapada, para serem esticados suavemente na outra, para serem manuseados com cuidado para que um único fio puxado com muita força não desfaça todo o tecido.

“A natureza do homem é multifacetada; os componentes da sociedade são de uma complexidade indescritível”, escreveu Burke. “E, portanto, nenhuma ação ou iniciativa de poder pode ser simples ou responder plenamente à complexidade da natureza humana e de suas relações sociais”.

GESTÃO DA COMPLEXIDADE

A principal crítica de Burke aos revolucionários franceses é precisamente que eles prestaram muito pouca atenção a essa complexidade.

“Eles eram homens de teoria, não de prática”, escreve Burke.

Homens experientes tendem a ser cautelosos ao fazer mudanças radicais no que foi meticulosamente construído. Homens de teoria tendem a ser imprudentes com o que herdaram sem construí-lo.

“Eles construíram uma revista underground que vão explodir, com uma grande explosão. O passado vai explodir, os tratados, as leis, o Parlamento vão explodir. De seu lado, eles têm "os direitos do homem". Limitações não podem ser aceitas em nome desses direitos”.

Não que Burke fosse contra os "direitos" per se. A caricatura de Burke quer que ele seja o "grande conservador", um político para quem qualquer tipo de mudança era perigoso na prática e anátema em princípio.

Essa caricatura do pensador irlandês teria surpreendido seus contemporâneos, que o conheciam como o campeão da emancipação católica – o movimento pelos direitos civis de sua época – e outras causas reformistas (e geralmente impopulares).

UM COLOCAÇÃO MAIS ADEQUADA PARA BURKE

Uma colocação mais correta de Burke o colocaria na área dos "quase-liberais", ou "quase-conservadores". Burke desafia as categorizações fáceis de seu tempo e até mesmo as do nosso tempo. Ele acreditava em um governo razoavelmente pequeno, no reformismo gradual, na soberania do parlamento e, com certas limitações, nos direitos individuais.

Achava que para garantir os direitos não bastava simplesmente declará-los no papel, codificá-los em lei e reivindicá-los como dom de Deus ou da vontade geral.

As condições da liberdade deveriam irradiar do exemplo do poder público, da educação moral, da lealdade à nação e à própria pátria, e de um são respeito pela "sabedoria latente" em costumes e crenças de longa data.

Burke carecia da clareza e do idealismo de Thomas Jefferson, mas o pensador irlandês não sofria com tanta hipocrisia que afligia o estadista americano, defensor do igualitarismo, mas não para pessoas de cor. O proprietário de terras Thomas Jefferson, que tinha muitos escravos, nunca disse uma palavra contra a escravidão, a qual, por outro lado, Burke se opôs sem nunca se tornar um proponente de um princípio de igualdade.

BURKE SOBRE TRUMP

O que foi dito pode ser suspeito para os leitores modernos, especialmente os progressistas. Mas considere o que Burke pode ter pensado sobre Trump e o trumpismo. Ele teria ficado horrorizado com as palavras de Trump para "drenar o pântano". A metáfora o teria lembrado de que, ao destruir toda a vida dentro do pântano, apenas o lodo é deixado no final.

Ele teria ficado enojado com a autopromoção da família Trump. Entre as grandes causas da vida de Burke estavam a luta pelo impeachment de Warren Hastings, o de fato governador geral da Índia, à frente de uma administração corrupta e cruel.

Acima de tudo, Burke teria ficado enojado com as maneiras de Trump.

“Boas maneiras são mais importantes que as leis”, escreveu ele com convicção.

BOAS MANEIRAS E DECÊNCIA PÚBLICA

“A lei nos afeta, mas de forma parcial e esporádica. As boas maneiras, ao contrário, são o que nos aborrece ou nos conforta, nos corrompe ou nos purifica, nos exalta ou nos rebaixa, nos barbariza ou civiliza... Dão forma e cor à nossa vida. Conforme a qualidade dos costumes, a moral se fortalece ou se enfraquece”.

A visão de Burke sobre a centralidade dos costumes sobre as normas, das normas sobre a moral, da moral sobre a cultura e da cultura sobre a ordem política significa que ele não ficaria impressionado com as alegações de que Trump "ganhou" com a nomeação de juízes conservadores ou a redução do poder corporativo. taxa de imposto. Essas teriam sido ninharias imersas em um contexto muito mais perigoso.

O verdadeiro legado de Trump, aos olhos de Burke, teria sido sua incansável degradação da cultura política, da correção pessoal, do respeito pelas instituições, do amor pela tradição, da confiança dos cidadãos nas autoridades civis.

Todos esses são ingredientes de uma sociedade que acredita – e está certa em fazê-lo – em sua própria decência básica.

"Para poder amar nosso país", escreveu ele, "nosso país deve ser um lugar bonito e decente".

CONTINUIDADE E MUDANÇA

Por outro lado, Burke não teria sido menos tolerante com a extrema esquerda. “Vocês começaram a se sentir desconfortáveis”, disse ele aos revolucionários franceses, “porque começaram a desprezar tudo o que lhes pertence”.

Para Burke, os materiais para uma mudança social positiva seriam encontrados no que o país já tinha – histórica, cultural e institucionalmente – e não no que faltava.

A Grã-Bretanha tornou-se a sociedade mais liberal de seu tempo, argumentou Burke, porque viveu de acordo com o que ele chamou de "nossas leis e liberdades antigas e indiscutíveis", transmitidas "como herança de nossos ancestrais. Este legado”, acrescentou, “é um princípio seguro de continuidade; o que não exclui de forma alguma o princípio da melhoria”.

A estátua manchada de tinta de George Washington no Washington Square Park, em Nova York

RESPEITO PELAS INSTITUIÇÕES

As pessoas que agora pintam as estátuas de Thomas Jefferson e George Washington e pintam com spray "1619" em seus monumentos pensam que podem expor a hipocrisia racial dos pais fundadores.

Se Burke ainda estivesse vivo, ele provavelmente notaria que as pessoas que trocam velhas liberdades – liberdade de expressão, por exemplo – por novos direitos (por exemplo, liberdade de expressão). de palavra) pode terminar em breve sem nenhum dos dois.

Burke argumentaria que não é fácil ensinar respeito pelas instituições políticas democráticas quando se joga tinta com desdém nos monumentos dos fundadores dessas instituições.

Isso sugeriria aos manifestantes ansiosos por exigir maior igualdade para todos os americanos que é melhor alistar a memória dos fundadores para uma causa do que entregar sua defesa a oponentes políticos.

Ele alertaria que a destrutividade em relação à propriedade tende a abrir caminho para a violência contra as pessoas.

Alertaria que os danos à ordem civil, ao património público e, sobretudo, aos valores que os manifestantes pretendem defender, poderão ser de difícil reparação. “A raiva e o frenesi destroem mais em meia hora do que a prudência, a reflexão e a previsão construíram em cem anos”.

PORQUE BURKE AINDA TEM ALGO A ENSINAR

Como Burke defende um conceito de liberdade diferente do popular hoje, pode ser fácil descartar seus ensinamentos como interessantes, mas irrelevantes. George Will, em sua magnum opus A sensibilidade conservadora, fala de Burke como um "trono e altar" conservador de pouca relevância para seus contemporâneos.

O que quer que se diga sobre eventos como os de Portland ou Seattle ou outros lugares do mundo (após a morte de Floyd), não é a tomada da Bastilha e as vigílias não são jacobinismo - ou, pelo menos, ainda não. Hora de escrever Reflexões sobre as revoluções na América e no mundo ainda está longe.

Ler e admirar Burke não exige que você reconheça seu pensamento, muito menos trate-o como um profeta. Mas é uma oportunidade de aprender algo com um homem que viu, com mais clareza do que a maioria, como “programas muito confiáveis, com começos muito promissores, muitas vezes acabam se transformando em sistemas vergonhosos e deploráveis.

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