comparatilhe

O embate entre o Tribunal Alemão e o Tribunal Europeu e a verdadeira aposta

A existência do euro é impensável sem reconhecer a competência de prestamista de última instância do BCE, mas a evolução dos tempos leva-nos a repensar o próprio sistema monetário e sobretudo a responder à questão central da concepção da Europa: simples coordenação técnica ou integração?

O embate entre o Tribunal Alemão e o Tribunal Europeu e a verdadeira aposta

La tribunal constitucional alemão recentemente decidiu contra o Tribunal Europeu de Justiça e vale a pena refletir sobre isso.

Para o Tribunal Europeu a compra de títulos da dívida pública nacional no mercado secundário não viola o art. 123.º do Tratado, que proíbe o BCE de financiar os Estados; que sim proíbe a compra de títulos de dívida, mas se direto, ou seja, no momento da emissão; o que permite, portanto, que sejam adquiridos no mercado secundário, o que é funcional para a estabilidade monetária. Segundo o Tribunal alemão, o efeito de financiamento do Estado, produzido pela compra no mercado, deixa de ser secundário se, pela dimensão e continuidade das operações, for consolidado de forma a contornar a proibição de financiamento direto : a compra não é proporcional para o gol; está em fraude ao art. 123.

Do ponto de vista técnico, o argumento do Tribunal Europeu é impecável. O julgamento recai sobre a única operação em disputa; válido se, quanto às quantidades e modalidades de compra, cumprir as condições que a tornam uma intervenção de estabilidade monetária, com indicações precisas para que o inevitável financiamento do Estado emissor fique limitado com efeito indireto. efeito contingente uma vez que o financiamento cessa com a revenda dos títulos na prossecução do objetivo primordial: para o emitente, a precariedade do financiamento impede-o de nele poder contar; portanto, o financiamento é avaliado pelo Tribunal proporcional ao objetivo principal. O julgamento da Corte permanece circunscrito a validade da decisão de compra que deu origem ao litígio. Enquanto a correta execução da decisão de compra é da responsabilidade do BCE, bem como qualquer desvio dos seus poderes para a repetição das compras ao longo do tempo. Questões de responsabilidade que podem ser levantadas mediante objeção dos titulares dos dados. O Tribunal pode eventualmente ser chamado para julgá-los, mas nesses casos o conflito não estaria na compra dos títulos, mas sim na conduta do Banco, denunciada pelo interessado como abusiva.

É nessa perspectiva que se deve entender a decisão do tribunal alemão. Se olharmos com o olho da política das instituições, o BCE tem operado desde credor de última instância para reparar a dívida, não só pública, que produziu a grave depressão de 2008; novamente é chamado a intervir na atual crise devido à pandemia; será chamado a apoiar a dívida europeia que se tornou necessária para subsidiar as economias nacionais em crise. Prova disso é a expansão do balanço do Banco fruto das intervenções prolongadas fisiologicamente, como é o caso do Fed e dos bancos centrais em geral. De acordo com o Tribunal Alemão, o art. 123 proíbe o Banco de operar como credor de última instância.

Ao comparar as duas decisões, além da capacidade técnica da argumentação da Corte Européia, a antinomia entre a vedação do art. 123 e a criação do euro; melhor, entre a configuração do BCE no quadro das instituições europeias e a vontade política de criar a nova moeda europeia com o euro: substituir as moedas nacionais pelo euro. Pode ser uma ordem monetária estável sem reconhecer ao banco central a competência de credor de última instância?

É a antinomia que vemos subjacente à decisão do Tribunal Europeu, resolvida a favor do BCE. Não é possível que o legislador europeu tenha criado o euro sem o apoio do banco central na sua competência de emprestador de última instância. Tendo reconhecido que a criação da moeda única é uma decisão política fundamental, a disciplina monetária deve ser coerente com ela; a interpretação das disposições individuais deve estar sujeita a ela, para evitar que a prevalência da disposição particular conduza à dissolução da decisão fundamental; ou seja, evitar que a prevalência da letra do art. 123 conduziram à queda do euro como moeda comum devido à ocorrência de uma gravíssima depressão nas economias europeias, das quais, de facto, o euro passou a ser a moeda. Em vez disso, o Tribunal alemão abre para esta segunda alternativa: a possível eliminação dos estados insolventes, se não a dissolução do euro. 

Por que a antinomia no sistema monetário europeu?

Devemos isso à ideologia da centralidade do mercado na organização da economia, que surgiu desde a década de 80, a partir dos EUA. O mercado deve ser subtraído das políticas de intervenção do Estado, que devem ser relegadas à tarefa mínimo ordenar as ferramentas para a realização de transações que são de pertinência exclusiva dos protagonistas para a organização de seus interesses, decisões e responsabilidades: na verdade, de pertinência exclusiva do mercado. A ideologia impôs-se na constituição do BCE, investido da função técnica exclusiva da estabilidade da moeda (euro) ao serviço das transacções privadas. O banco central por conta própria é retirado do estado original e tradicional função de credor nos desequilíbrios orçamentários; na sua função, posteriormente adquirida, de instrumento monetário para corrigir as recessões econômicas e promover investimentos em falhas de mercado. As crises são um assunto privado que o mercado absorve para retornar ao equilíbrio de acordo com sua propensão natural: como em qualquer ideologia, o verdade do dogma sobre natureza das coisas. A ideologia impôs a arte. 123; justifica, no papel de agência técnica, a forte independência do BCE; explica ainda a instituição do euro apesar da pluralidade de Estados-membros, escravizados ao constrangimento orçamental como qualquer outro interveniente no mercado: não é o Estado que cria a moeda através do seu banco central, mas é este, o BCE, que cria a moeda ao serviço exclusivo do mercado, obrigando os Estados nacionais. É uma ideologia que só encontrou tal formulação completa nas instituições européias; o Fed não responde a essa ideia, nem em sua experiência de gestão monetária, nem em sua independência do Presidente e do Congresso. A crise de 08, ainda em curso, agora a crise pandémica, evidenciam a incoerência em termos de experiência. É uma ideia que só poderia ser realizada com enormes custos econômicos e, portanto, sociais pela destruição de recursos que de outra forma estariam disponíveis; é colocado artificialmente um constrangimento à intervenção política no enfrentamento das crises, que não pode ser eliminado no dinamismo da sociedade; vínculo muito mais consistente do que a ancoragem da moeda ao ouro na época.

A evolução das coisas – acompanhada pela jurisprudência e pelas orientações políticas que vão surgindo ao nível dos Estados aderentes, e consequentemente ao nível das instituições europeias – recoloca o BCE na função tradicional de banco central emprestador de última instância, por sua capacidade de criar moeda de acordo com as necessidades das políticas econômicas expressas pelas sociedades por meio de suas instituições democráticas. Mas precisamente por isso, a questão da independência do banco central, que já não se justifica nas condições atuais, é levantada com razão em muitos quadrantes. As intervenções do credor de último recurso podem exigir a distinção dos estados e entidades a serem apoiadas; por exemplo. tem surgido o pedido de que nas operações de compra no mercado de títulos privados o BCE privilegie os emitentes que direccionem a produção para o verde. O Banco só pode fazer política sob a responsabilidade de instituições políticas democraticamente dependentes. Por outro lado, a política monetária, subtraída dos estados, organizada em termos federativos, implica solidariedade na gestão.

Então, para corrigi-lo não basta trazer o Banco de volta às instituições políticas da UE. O sistema monetário precisa ser repensado e reinventado para adequá-lo às novas experiências federativas. Por um lado, livre do ouro, de qualquer outra paridade, a criação do dinheiro tornou-se livre: a Era do Dinheiro Mágico; o mito do déficit. Por outro lado, a solidariedade implícita na política monetária comum deve ser orientada.

Mas há mais. Ideologia não para por aí debate doutrinário entre Friedman e Keynes, entre monetaristas e intervencionistas, entre neoliberais e socialistas, entre o estado mínimo e o estado de bem-estar. A doutrina é retomada pela política, que a reconfigura na consistência de interesses opostos: desdobra-se nos EUA na evidente oposição de republicanos e democratas (pelo menos até a presidência de Trump). Na perspectiva do estado mínimo, o capital, as finanças, na globalização escapam à regulação estatal, apoderam-se da criação monetária. Na Europa a história é diferente devido à presença de estados de bem-estar. A alternativa política reflete-se na concepção da UE: coordenação técnica ou integração social? Entre uma Europa técnica, privilegiada pelo capital global, ou uma Europa política que, na economia global, só assim pode ser investida dos problemas sociais do território. O debate ao mais alto nível político tem as suas raízes na divisão da opinião pública: vimos isso no caso grego. Os acontecimentos recentes estão levando a esta segunda alternativa, uma modificação da abordagem original: as difíceis negociações são explicadas; explica a saída da Inglaterra já oposta à integração social.

Comente