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A alimentação, os paradoxos de hoje: a fome de um lado e a obesidade de outro

Um estudo de The European House – Ambrosetti Club – O duplo paradoxo da alimentação atual: por um lado, a fome está longe de ser erradicada e, por outro, a obesidade é um problema que atinge grandes segmentos da população dos mais ricos

A alimentação, os paradoxos de hoje: a fome de um lado e a obesidade de outro

A era em que vivemos caracteriza-se por alguns graves desequilíbrios no funcionamento e gestão dos sistemas agroalimentares à escala global. São autênticos paradoxos ligados à produção de alimentos e à sua distribuição. Três desses paradoxos, em especial, chamam a atenção por sua importância. O primeiro paradoxo diz respeito à presença no mundo de quase um bilhão de pessoas que sofrem de fama, diante de um número ainda maior de homens e mulheres que se alimentam – sem o devido cuidado com a mistura e o equilíbrio entre os alimentos – em excesso, correndo para maiores riscos de doenças metabólicas graves (como diabetes), de tumores e doenças cardiovasculares.

Pode-se dizer que é o paradoxo da falta de “acesso” ao consumo “excessivo” de alimentos. O segundo paradoxo diz respeito ao uso não otimizado da produção de alimentos, em termos de destinos de consumo. Em um cenário de insegurança alimentar global muito aguda, um terço de toda a produção global de alimentos destina-se a alimentar aproximadamente três bilhões de animais de fazenda. Soma-se a isso outra forma de uso indevido dos recursos da terra: a competição entre biocombustíveis e alimentos. Os alimentos para consumo humano (alimentos) são colocados em concorrência com a produção de alimentos para alimentação de animais de produção (ração) e com a produção de alimentos para fins não relacionados com a nutrição (combustíveis). O terceiro paradoxo diz respeito desperdício de comida face aos crescentes fenómenos de escassez de recursos produtivos agrícolas.

Este é o chamado fenômeno de desperdício/perdas de alimentos. Lidos em conjunto, os três paradoxos oferecem a medida da distância que separa a realidade atual de uma situação que pode ser julgada, se não ótima, pelo menos aceitável. A seguir, propomos uma descrição mais detalhada de cada paradoxo e as causas profundas dos desequilíbrios destacados. “Acesso à comida” versus “Comer demais”.

A desnutrição e a supernutrição ameaçam a vida de milhões de homens e mulheres todos os anos por diferentes razões. De fato, mais da metade da carga de doenças no mundo pode ser atribuída à fome, suprimento desequilibrado de energia ou deficiências de vitaminas e minerais. Comecemos pela análise do primeiro aspecto, o relativo ao acesso aos alimentos. A gravidade do problema da segurança alimentar – entendida como o nível de disponibilidade e possibilidade de acesso aos alimentos para indivíduos e populações – emerge claramente daanálise de dados.

Segundo estimativas da FAO, o número total de pessoas que passaram fome em 2011 foi de 868 milhões. De uma população de cerca de 6,9 ​​bilhões de pessoas, o problema da desnutrição e desnutrição é sobre hoje 12,6% do total. 36 milhões de pessoas morrem todos os anos devido às consequências da desnutrição. “Fome” não significa apenas falta de quantidades adequadas de alimentos. Igualmente importante é a composição da dieta. Quem não recebe o aporte nutricional correto nas quantidades certas não consegue levar uma vida saudável e ativa: as consequências são doenças graves, mortes e uma perda incalculável do potencial humano e do desenvolvimento social.

As principais causas da desnutrição e desnutrição são os desastres naturais, os conflitos, a pobreza endêmica, a falta de infraestrutura para a agricultura e a exploração excessiva do meio ambiente. Enquanto quase um bilhão de pessoas luta para sobreviver subnutridas, centenas de milhões de pessoas – predominantemente nas áreas mais ricas da Terra – sofrem as consequências da doenças causadas por dietas excessivas ou desequilibrado. 29,2 milhões de pessoas morrem todos os anos de patologias relacionadas a hábitos alimentares errados, em comparação com 1,5 bilhão de pessoas com sobrepeso ou obesidade significativa. É uma verdadeira epidemia.

Infelizmente, porém, todos os países ocidentais estão observando um crescimento exponencial do fenômeno daobesidade e excesso de peso já na infância. Segundo dados recolhidos pelo International Obesity Task Force, existem no mundo 155 milhões de crianças em idade escolar obesas ou com excesso de peso, ou seja, 1 em cada 10. Ao mesmo tempo, em países emergentes (como, por exemplo, China e Brasil ), há para a preocupante difusão de ambos os fenômenos extremos, pois, por um lado, assumem-se modelos alimentares que levam parte da população à obesidade e, por outro, ocorrem situações de preocupante desnutrição e desnutrição em muitas áreas da o país. As causas dos fenômenos descritos são muito diversas, como observamos. O paradoxo"acesso – excesso” é, no entanto, o sintoma mais evidente das dificuldades que os atores dos sistemas agroalimentares experimentam hoje em encontrar soluções ótimas para as necessidades nutricionais de homens e mulheres, em todas as latitudes.

Destinos de consumo de bens alimentares (Food vs Feed vs Fuel)

O segundo paradoxo diz respeito aos usos alternativos dos produtos agrícolas alimentares. Numa realidade em que os principais recursos para a agricultura (sobretudo, água e chão) estão cada vez mais "escassos", a competição para garantir seu uso é muito acirrada e envolve também processos e atividades não relacionadas à alimentação humana, como a produção de biocombustíveis. Para entender a extensão dos problemas ligados à escassez de recursos, basta pensar que hoje centenas de milhões de pessoas têm acesso limitado e insuficiente à água potável e cerca de quatro mil crianças morrem diariamente por esse motivo. Todos os estilos de vida, todos os processos produtivos que impliquem uma utilização excessiva de água devem, por isso, ser questionados e redefinidos à luz de uma projeção futura de maior sustentabilidade. Neste contexto, as escolhas de consumo alimentar também assumem importância, pois ativam processos produtivos com diferentes impactos ambientais.

Para apoiar a difusão de estilos alimentares mais conscientes, o BCFN concebeu e desenvolveu uma ferramenta que permite avaliar as consequências das escolhas de consumo no setor alimentar, para a saúde das pessoas e para o ambiente: o denominado Dupla Pirâmide Nutricional e ambiental. A análise realizada para a construção da Dupla Pirâmide destacou, mais uma vez, como a dieta mediterrânea constitui uma abordagem nutricional ótima em termos de mistura de ingredientes e impacto no meio ambiente. A questão dos usos alternativos de alimentos também diz respeito à produção de biocombustíveis, os chamados biocombustível. Os objetivos de segurança energética e o problema do esgotamento das fontes de energia fóssil são dois dos fatores que levaram à crescente atenção às energias renováveis, tanto nos países ocidentais quanto nos emergentes e em desenvolvimento. Entre as fontes de energia "verde", a participação na produção e consumo de biocombustíveis aumentou rapidamente nos últimos anos e espera-se que continue a crescer no futuro próximo. De fato, a produção mundial de biocombustíveis aumentou em poucos anos de 49,6 bilhões de litros em 2007 para 88,6 bilhões de litros em 2010, ano que registrou produção recorde antes da leve desaceleração em 2011.

Esse crescimento foi impulsionado principalmente por políticas energéticas nacionais e supranacionais (como mandatos sobre cotas de biocombustíveis e metas de produção de energia renovável), subsídios, cortes de impostos e medidas de proteção. Vale lembrar que os biocombustíveis podem ser de "primeira" ou "segunda" geração: conforme definição doAgência Internacional de Energia (AIE), os biocombustíveis de primeira geração são tipicamente cana-de-açúcar, etanol de raiz ou milho e biodiesel. Os biocombustíveis de segunda geração, por outro lado, são produzidos a partir de substâncias orgânicas não alimentares, como celulose, hemicelulose ou lignina. O fato de a produção destes últimos ser muito mais complexa e cara faz com que sua participação no total ainda seja bastante baixa hoje. Esta é a razão pela qual a crescente produção de biocombustíveis compete diretamente com o uso de matérias-primas no setor de alimentos. Os efeitos da substituição de culturas devido à demanda por biocombustíveis não apenas ajudaram a elevar os preços dos grãos durante a crise de alimentos de 2008, mas também geraram uma tendência de alta em todos os tipos de alimentos, com efeitos negativos especialmente nos países em desenvolvimento. O aspecto crítico levantado pela análise do segundo paradoxo diz respeito às escolhas alternativas de destino dos bens alimentares. Em outras palavras, trata-se de avaliar até que ponto é correto que os usos no campo, por exemplo, de energia possam limitar os potenciais escoamentos para o mercado de alimentação humana, influenciando as escolhas de oportunidades econômicas pelos agricultores.

Desperdício/perdas de alimentos

O terceiro e último paradoxo diz respeito ao desperdício de alimentos, numa passagem histórica de grande preocupação devido à reduzida disponibilidade de recursos agrícolas e alimentares (solo fértil, água, matérias-primas para a produção de fertilizantes, etc.). Ainda não existe uma definição única do fenómeno do desperdício alimentar, nem existem dados homogéneos e comparáveis ​​a nível europeu para medir a sua dimensão. Uma definição que considera todas as etapas da cadeia agroalimentar propõe distinguir entre:

  • as perdas alimentares, ou seja, as perdas que se determinam a montante da cadeia agroalimentar, principalmente nas fases de sementeira, cultivo, colheita, tratamento, conservação e primeira transformação agrícola;
  • desperdício de alimentos, ou seja, o desperdício que ocorre durante o processamento industrial, distribuição e consumo final.

O análise feito em 2011 por FAO estima o desperdício de alimentos no mundo em 1,3 bilhão de toneladas por ano, o equivalente a cerca de um terço da produção total de alimentos destinados ao consumo humano. Se ao longo da cadeia agroalimentar, além das perdas e desperdícios, considerarmos também a conversão da produção de alimentos em ração animal, descobrimos que apenas 43% do equivalente calórico dos produtos cultivados para fins alimentícios globalmente é consumido diretamente pelo ' homem. Enquanto nos países em desenvolvimento as perdas mais significativas se concentram na primeira fase da cadeia agroalimentar, sobretudo por limitações nas técnicas de cultivo, colheita e conservação, ou pela falta de infraestrutura adequada para transporte, entrega e armazenamento, em nos países industrializados, a maior parte dos resíduos ocorre nas fases finais da cadeia de abastecimento (consumo doméstico e restauração, em particular). Mesmo nesses países, porém, registram-se perdas significativas na fase agrícola: na Itália, por exemplo, em 2009 os produtos agrícolas deixados no campo somaram 17,7 milhões de toneladas, o equivalente a 3,25% da produção total. As causas do desperdício diferem nas diferentes etapas da cadeia agroalimentar:

  • na agricultura, as perdas de alimentos são atribuídas principalmente a fatores climáticos e ambientais, à disseminação de doenças e à presença de parasitas. A dotação tecnológica e infra-estrutural, as habilidades agronômicas e as técnicas de preparo do solo, semeadura, cultivo, colheita, tratamento e armazenamento são a base das diferenças significativas entre países em desenvolvimento e desenvolvidos;
  • nas fases de transformação do produto agrícola e dos produtos semiacabados, as causas que determinam o desperdício podem ser identificadas principalmente em avarias técnicas e ineficiências nos processos produtivos: normalmente falamos de “resíduos de produção”;
  • na distribuição e venda (tanto grossista como retalhista) o desperdício depende de múltiplas causas, incluindo encomendas inadequadas e previsões incorretas da procura;
  • o lixo doméstico surge da dificuldade do consumidor em interpretar corretamente a rotulagem dos alimentos; porque são preparadas porções muito grandes (tanto em restaurantes quanto em casa); devido a erros cometidos na fase de planejamento de compras (muitas vezes induzidos por ofertas promocionais); quando os alimentos não são armazenados adequadamente.

Superando contradições

Nos últimos quarenta anos, os sistemas agroalimentares modernos experimentaram significativos avanços técnico-produtivos em quase todo o mundo, garantindo – ainda que entre luzes e sombras – o acesso à alimentação a um número crescente de pessoas. Como muitas vezes acontece, porém, a resolução de problemas antigos tornou possível o surgimento de novos problemas com os quais devemos agora nos confrontar. O desafio futuro é enfrentar e resolver esses problemas, ao mesmo tempo em que aborda os escassez de recursos, ao fenômeno das mudanças climáticas, ao crescimento populacional. São inúmeras as acções a realizar, como sublinham também os trabalhos do BCFNpelos vários atores. As que nos parecem mais urgentes são:

  • criar uma agência mundial única que se ocupe, como a OPEP do petróleo, de monitorar e coordenar as políticas alimentares de forma integrada;
  • fortalecer os mecanismos de governança global das cadeias de suprimentos. É preciso superar o paradigma do mercado capaz de se autorregular e promover a coordenação de políticas globais e a redução de lógicas protecionistas ao longo do tempo. Em outras palavras, precisamos de um mercado melhor em escala global;
  • alcançar aumentos na produtividade agrícola. O desafio é continuar inovando, caminhando para o desenvolvimento de modelos agrícolas e produtivos com alta produtividade, maior qualidade e menor impacto ambiental;
  • investir mais em Pesquisa e Desenvolvimento para melhorar a qualidade e eficiência da produção agrícola;
  • melhorar os processos de distribuição de alimentos;
  • adaptar a cadeia de produção alimentar para gerir a volatilidade dos preços e garantir redes de segurança em caso de crise;
  • abordar estilos alimentares. Pela primeira vez na história, a ação governamental e o direcionamento dos modelos alimentares estão se tornando uma variável decisiva da política econômica;
  • “educar” os consumidores para um comportamento mais responsável nas escolhas de consumo e desperdício alimentar;
  • reduzir os desperdícios ainda não eliminados através da distribuição a pessoas desfavorecidas, maior atenção à adoção de padrões de produção que não introduzam perdas e desperdícios injustificados, desenvolvimento de acordos na cadeia de abastecimento entre agricultores, produtores e distribuidores para um planeamento mais correto da oferta alimentar.

Em resumo, os paradoxos sinalizam a existência de contradições não resolvidas. O superando contradições requer novas abordagens, juntamente com uma atenção renovada por parte das instituições e dos atores do sistema agroalimentar.

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